Vivemos num país desconhecido. Por baixo da informação tangível, dos números e das estatísticas, correm fluxos de acontecimentos inquantificáveis e que, no entanto, condicionam decisivamente a nossa vida. Quantas doenças psíquicas foram desencadeadas pela crise? Quanta energia vital se desperdiça na fabricação da imagem de um rosto jovem necessário exigido por tal profissão? São "dados" incognoscíveis ou imateriais, não susceptíveis de se tornarem informação. São não-notícias.
O Público deu-nos a possibilidade, neste número, de fazer aparecer esse avesso do estado da nação, levantando uma ponta do véu que o recobre e o esconde. Não se tratou, pois, de informar ou de desinformar, mas de fazer pensar diferentemente no país que temos e na informação que dele dispomos.
Ordenámos a não-informação em três categorias: o que é impossível conhecer (por exemplo, aquele factor decisivo, singular, único do "talento", que não entra numa grelha de avaliação de competências de um aluno), mas é condição essencial para que se ordene de modo inteligente, ético e eficaz a informação que se conhece; o que não se conhece mas que se poderia e deveria conhecer (o número de mortes estimado por atraso na lista de espera de uma operação) para o fazer entrar numa decisão política ou outra; o que seria possível conhecer mas que se torna impossível saber porque o seu conhecimento poria radicalmente em questão o regime das nossas sociedades pós-democráticas (por exemplo, o número de políticos corruptos). As inúmeras perguntas que fizemos aos organismos competentes receberam não-respostas, confirmando a ideia de um vazio obrigatório de informação: na secção "Pobreza" os dados recolhidos não permitem um plano de combate exaustivo e eficaz à pobreza; na secção "Política" a ausência de números oficiais sobre os políticos que detêm depósitos em offshores indica que a transparência nesse domínio subverteria o nosso regime político; e assim por diante.
O nosso país está demasiado "cheio" (de informações, imagens, bugigangas de toda a espécie) e quanto mais se enche mais se enterra o vazio essencial a que não se dá a importância que tem. Acreditamos que a informação que, por definição, vive da positividade do dado, do pleno, que nos enche os olhos e o cérebro criando a ilusão de pensamento, pode ser tratada de outra forma. A massa de informação a que hoje temos acesso contribui para uma espécie de visão global que faz da realidade um conjunto de coisas e factos objectivos - de que decorre ao mesmo tempo a despoetização do mundo e um crescente caos afectivo. Contra isso, acreditemos nas virtudes do vazio.
O que fizemos - em trabalho extraordinário de equipa - sugere a possibilidade e a necessidade de traçar um mapa de Portugal que mostre os trajectos duplos, de um pleno que constantemente atropela e exclui o vazio; e dos movimentos do vazio que abrem linhas de fuga, incita a pensar diferentemente, desencadeia poderosas forças de criação. Não estamos condenados ao que julgamos que nos condenaram. Só assim poderemos conceber reformas radicais que libertem as energias e mudem o país.
(editorial do jornal Público de hoje, da autoria de José Gil)
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