terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

A irritação é como um veneno ardente


"Quando os outros nos levam a irritarmo-nos com eles - com a sua insolência, injustiça, falta de escrúpulos - então o que acontece é que exercem poder sobre nós, alastram, devorando-nos a alma, pois a irritação é como um veneno ardente, que destrói todos os sentimentos brandos, nobres e equilibrados, e nos rouba o sono. Acossados pela insónia, acendemos a luz e irritamo-nos com a irritação, que se instalou dentro de nós como um parasita que nos explora e esgota. Não só nos sentimos furiosos pelo dano em si, como também pelo facto dele se desenvolver autonomamente dentro de nós, pois enquanto nós nos sentamos à beira da cama, com as fontes a latejar, o causador distante mantém-se indiferente ao poder destrutivo da irritação, cuja vítima somos nós. No palco vazio da nossa fantasia, mergulhados na luz ardente de uma fúria muda, representamos, na mais completa solidão, um drama imaginário com figuras e palavras espectrais, que com uma raiva impotente acirramos contra não menos espectrais inimigos, enquanto as labaredas geladas nos devoram as entranhas. E quanto mais desesperados nos sentirmos por tudo não passar de um teatro de sombras - em vez de uma confrontação real, em que sempre haveria a possibilidade de atacar o outro para estabelecer um equilíbrio do sofrimento -, tanto mais selvagem se toma a dança das sombras tóxicas, que nos perseguem até às mais obscuras catacumbas dos nossos sonhos. (Hás-de pagá-las, pensamos rancorosos, e passamos noites e noites a forjar palavras que possam atear-se no outro ou deflagrar como uma bomba incendiária, de modo a que seja então nele que as chamas da indignação alastrem, enquanto nós, apaziguados pelo mal alheio, bebemos tranquilamente o café matinal.) 
O que é que poderia significar agir correctamente perante a irritação? Nós não queremos ser pessoas insensíveis, perfeitamente indiferentes a tudo com que nos deparamos, seres cujas avaliações se esgotam em juízos frios e abstractos, sem que nada os consiga perturbar, porque nada os toca verdadeiramente. É por isso que não podemos desejar honestamente desconhecer a experiência da irritação, substituindo-a por uma indiferença obstinada que em nada se distinguiria da insensibilidade. A irritação também nos ensina a ver quem somos. É por isso que o que eu quero saber é o seguinte: em que é que poderia consistir educarmo-nos na irritação, desenvolver uma cultura da irritação que nos permitisse aproveitarmos o seu momento de conhecimento, sem sucumbirmos ao seu veneno? Podemos ter a certeza de que no leito de morte, e como parte do derradeiro balanço - uma parte tão amarga como cianeto - iremos constatar que desperdiçámos demasiada energia e tempo a curtir a irritação, obcecados em vingarmo-nos dos outros naquele solitário teatro de sombras que apenas nós, que impotentes o encenámos, conhecemos. O que é que podemos então fazer para melhorar esse balanço? Por que é que os nossos pais, professores e outros educadores nunca mencionaram isso? Por que é que nunca se chega a verbalizar um pouco dessa significativa dimensão? Por que é que nesse território não nos foi dada uma bússola que nos pudesse ajudar a evitar tamanho desgaste da alma em inúteis e autodestrutivas irritações?"
Amadeu Prado in "O Ourives das Palavras", ou melhor,
Pascal Mercier in "Comboio Noturno para Lisboa"

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

A Grécia de Sophia II

"Não tento descrever-lhe a Grécia nem tento dizer-lhe o que foi ali a minha total felicidade. Foi como se eu me despedisse de todos os meus desencontros, todas as minhas feridas e acordasse no primeiro dia da criação num lugar desde sempre pressentido. Sobre a Grécia só o Homero me tinha dito a verdade: mas não toda. (...) Sob o sol a pique, numa claridade azul indescritível, o ar é tão leve que nos torna alados e o menor som se recorta com uma inteira nitidez. As enormes e constantes montanhas povoam tudo de solenidade. Cheira a resina e a mel e há uma embriagez austera e lúcida (...) Gostaria de lhe contar tudo o que vi, desde o sabor espantoso do vinho com resina que me entonteceu logo na primeira noite da minha chegada, até à água gelada que bebi num dia de calor intenso nas montanhas de Delfos. Mas sinto que só sei falar mal disto tudo.

Aqui minha fala se quebra como a quem
Viu em sua frente um deus visível
E vai sem imaginação, perdidas as palavras
No real indicível
O que há de extraordinário ali é que o mistério é a luz do sol. Na Acrópole ao meio-dia, com o sol a pino, toda a gente fala em voz baixa. Os próprios turistas, tão exuberantes em Itália, ficam transformados.
(...) Será possível que eu lá volte? Assim espero. E de todo o coração desejo que voçê um dia lá possa ir. Pois o que ali há, além de tudo o mais, é uma intensa felicidade de existir que nos lava de tantas feridas." (carta de Sophia a Jorge de Sena , Maio de 1964)

"Apoderou-se de mim uma fúria de viajar. Mas acima de tudo queria voltar à Grécia que foi para mim o deslumbramento inteiro e puro e onde me senti livre e com asas. A felicidade grega, a felicidade do mundo objectivo, sem a menor mancha de caso pessoal, é qualquer coisa de imaginável e da qual só o Homero dá uma ideia." (carta de Sophia a Jorge de Sena, novembro de 1964) 

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

A Grécia de Sophia


FOI NO MAR QUE APRENDI
Foi no mar que aprendi o gosto da forma bela

Ao olhar sem fim o sucessivo

Inchar e desabar da vaga

A bela curva luzidia do seu dorso

O longo espraiar das mãos de espuma

Por isso nos museus da Grécia antiga

Olhando estátuas frisos e colunas

Sempre me aclaro mais leve e mais viva

E respiro melhor como na praia
Sophia de Mello Breyner Andresen 
(in Obra Poética - o Búzio de Cós e outros poemas)


O mar e a Grécia entrelaçam-se na obra de Sophia.
É a própria Sophia que o explica:
"...aquilo de que sempre mais gostei foi do Verão, da praia e das férias. No ano em que aprendi a ler, passei alguns dias numas termas [...] Como não tinha nada para ler, pedi à minha mãe que me comprasse um livro [...] e escolhi um que se chamava Mitologia Grega porque me fascinei com as fotografias de diversas estátuas. Lembravam-me o mar, qualquer coisa da claridade, da respiração do mar e do ritmo das ondas.”
Foram várias as viagens de Sophia à Grécia. A primeira foi em 1963 com Agustina Bessa-Luís e o marido. Voltou à  Grécia várias vezes, uma das quais também com Eugénio de Andrade.


"Chegada à Grécia
É Verão, de manhã, num barco entre Itália e Grécia. Sentada em cima de um molho de cabos, Sophia de Mello Breyner Andresen escreve na primeira página de um caderno escolar: "11 de Setembro de 1963. Navegamos sem um balanço. Mar azul, céu azul, ilhas azuis enevoadas." E então vê a ilha de Ulisses à sua frente: "Ítaca aparece, vai-se desenhando: verde, até ao mar, despovoada, quase sempre." É a sua primeira vez na Grécia. "Piso às quatro e meia a terra grega. Entrada maravilhosa à saída de Patras. Vamos rente ao mar entre oliveiras e ciprestes e montanhas azuladas. Calor leve, ar perfumado. As montanhas ligam a terra ao Olimpo. Paramos e vou molhar os pés, as mãos, os braços e a cara no mar. A água é maravilhosa, transparente e fresca. Bebo-a. É muito salgada. É a paisagem mais maravilhosa que vi na minha vida." Sophia tem 43 anos. Já leu a Grécia em Homero, nas tragédias de Sófocles, Ésquilo e Eurípedes, na História de Arte - mas agora está lá. Pode tocar-lhe, comê-la à beira da estrada com queijo de cabra, tomate, pepino e azeitonas. Bebê-la no vinho branco de resina. Entrar na pedra como no mar: "De manhã voltei à Acrópole sozinha. Escrevi Sophia, Setembro de 1963, numa parede do Parténon, na frontaria, à direita, numa reentrância. Coisa bárbara e selvagem mas que tive de fazer."" (de Alexandra Lucas Coelho, com base nos cadernos de viagem de Sophia).

"A considerável influência que Sophia sofreu da cultura da Grécia Antiga, seja durante o tempo dos seus estudos, seja durante as suas viagens pelo Mediterrâneo, causa que nos seus versos apareçam Orfeu e Eurydice, Dionísos, Endemyion, Electra, Ariadne, Antínoo, ou as Parcas, entre outros. Também as localidades designadas, por exemplo, Creta e a cidade Cnossos, Delfos ou Ítaca patenteiam o seu encantamento por estes lugares como representantes de um mundo original ao qual tende regressar." (Klára Šimečková)

O Centro Nacional de Cultura organizou em 2013 uma viagem à Grécia de Sophia. Sobre essa viagem Alberto Vaz da Silva escreveu várias crónicas. Podem ler-se aqui. Eis o itinerário:







Carta de Sophia

Carta de Sophia de Mello Breyner Andresen ao marido, Fran­cisco Sousa Tavares, preso em Cax­ias, 1966 (doc­u­men­to que se encontra na Bib­lioteca Nacional de Por­tu­gal)

domingo, 2 de fevereiro de 2014

A Alegoria da Caverna

A Caverna de Platão, Escola Flamenga
Sócrates: Agora imagine a nossa natureza, segundo o grau de educação que ela recebeu ou não, de acordo com o quadro que vou fazer. Imagine, pois, homens que vivem em uma morada subterrânea em forma de caverna. A entrada se abre para a luz em toda a largura da fachada. Os homens estão no interior desde a infância, acorrentados pelas pernas e pelo pescoço, de modo que não podem mudar de lugar nem voltar a cabeça para ver algo que não esteja diante deles. A luz lhes vem de um fogo que queima por trás deles, ao longe, no alto. Entre os prisioneiros e o fogo, há um caminho que sobe. Imagine que esse caminho é cortado por um pequeno muro, semelhante ao tapume que os exibidores de marionetes dispõem entre eles e o público, acima do qual manobram as marionetes e apresentam o espetáculo.

Glauco: Entendo
Sócrates: Então, ao longo desse pequeno muro, imagine homens que carregam todo o tipo de objetos fabricados, ultrapassando a altura do muro; estátuas de homens, figuras de animais, de pedra, madeira ou qualquer outro material. Provavelmente, entre os carregadores que desfilam ao longo do muro, alguns falam, outros se calam.
Glauco: Estranha descrição e estranhos prisioneiros!
Sócrates: Eles são semelhantes a nós. Primeiro, você pensa que, na situação deles, eles tenham visto algo mais do que as sombras de si mesmos e dos vizinhos que o fogo projeta na parede da caverna à sua frente?
Glauco: Como isso seria possível, se durante toda a vida eles estão condenados a ficar com a cabeça imóvel?
Sócrates: Não acontece o mesmo com os objetos que desfilam? Glauco: É claro.
Sócrates: Então, se eles pudessem conversar, não acha que, nomeando as sombras que vêem, pensariam nomear seres reais?
Glauco: Evidentemente.
Sócrates: E se, além disso, houvesse um eco vindo da parede diante deles, quando um dos que passam ao longo do pequeno muro falasse, não acha que eles tomariam essa voz pela da sombra que desfila à sua frente?
Glauco: Sim, por Zeus.
Sócrates: Assim sendo, os homens que estão nessas condições não poderiam considerar nada como verdadeiro, a não ser as sombras dos objetos fabricados.
Glauco: Não poderia ser de outra forma.
Sócrates: Veja agora o que aconteceria se eles fossem libertados de suas correntes e curados de sua desrazão. Tudo não aconteceria naturalmente como vou dizer? Se um desses homens fosse solto, forçado subitamente a levantar-se, a virar a cabeça, a andar, a olhar para o lado da luz, todos esses movimentos o fariam sofrer; ele ficaria ofuscado e não poderia distinguir os objetos, dos quais via apenas as sombras anteriormente. Na sua opinião, o que ele poderia responder se lhe dissessem que, antes, ele só via coisas sem consistência, que agora ele está mais perto da realidade, voltado para objetos mais reais, e que está vendo melhor? O que ele responderia se lhe designassem cada um dos objetos que desfilam, obrigando-o com perguntas, a dizer o que são? Não acha que ele ficaria embaraçado e que as sombras que ele via antes lhe pareceriam mais verdadeiras do que os objetos que lhe mostram agora?
Glauco: Certamente, elas lhe pareceriam mais verdadeiras.
Sócrates: E se o forçassem a olhar para a própria luz, não achas que os olhos lhe doeriam, que ele viraria as costas e voltaria para as coisas que pode olhar e que as consideraria verdadeiramente mais nítidas do que as coisas que lhe mostram?
Glauco: Sem dúvida alguma.
Sócrates: E se o tirarem de lá à força, se o fizessem subir o íngreme caminho montanhoso, se não o largassem até arrastá-lo para a luz do sol, ele não sofreria e se irritaria ao ser assim empurrado para fora? E, chegando à luz, com os olhos ofuscados pelo brilho, não seria capaz de ver nenhum desses objetos, que nós afirmamos agora serem verdadeiros.
Glauco: Ele não poderá vê-los, pelo menos nos primeiros momentos.
Sócrates: É preciso que ele se habitue, para que possa ver as coisas do alto. Primeiro, ele distinguirá mais facilmente as sombras, depois, as imagens dos homens e dos outros objetos refletidas na água, depois os próprios objetos. Em segundo lugar, durante a noite, ele poderá contemplar as constelações e o próprio céu, e voltar o olhar para a luz dos astros e da lua mais facilmente que durante o dia para o sol e para a luz do sol.
Glauco: Sem dúvida.
Sócrates: Finalmente, ele poderá contemplar o sol, não o seu reflexo nas águas ou em outra superfície lisa, mas o próprio sol, no lugar do sol, o sol tal como é.
Glauco: Certamente.
Sócrates: Depois disso, poderá raciocinar a respeito do sol, concluir que é ele que produz as estações e os anos, que governa tudo no mundo visível, e que é, de algum modo a causa de tudo o que ele e seus companheiros viam na caverna.
Glauco: É indubitável que ele chegará a essa conclusão.
Sócrates: Nesse momento, se ele se lembrar de sua primeira morada, da ciência que ali se possuía e de seus antigos companheiros, não acha que ficaria feliz com a mudança e teria pena deles?
Glauco: Claro que sim.
Sócrates: Quanto às honras e louvores que eles se atribuíam mutuamente outrora, quanto às recompensas concedidas àquele que fosse dotado de uma visão mais aguda para discernir a passagem das sombras na parede e de uma memória mais fiel para se lembrar com exatidão daquelas que precedem certas outras ou que lhes sucedem, as que vêm juntas, e que, por isso mesmo, era o mais hábil para conjeturar a que viria depois, acha que nosso homem teria inveja dele, que as honras e a confiança assim adquiridas entre os companheiros lhe dariam inveja? Ele não pensaria antes, como o herói de Homero, que mais vale “viver como escravo de um lavrador” e suportar qualquer provação do que voltar à visão ilusória da caverna e viver como se vive lá?
Glauco: Concordo com você. Ele aceitaria qualquer provação para não viver como se vive lá.
Sócrates: Reflita ainda nisto: suponha que esse homem volte à caverna e retome o seu antigo lugar. Desta vez, não seria pelas trevas que ele teria os olhos ofuscados, ao vir diretamente do sol?
Glauco: Naturalmente.
Sócrates: E se ele tivesse que emitir de novo um juízo sobre as sombras e entrar em competição com os prisioneiros que continuaram acorrentados, enquanto sua vista ainda está confusa, seus olhos ainda não se recompuseram, enquanto lhe deram um tempo curto demais para acostumar-se com a escuridão, ele não ficaria ridículo? Os prisioneiros não diriam que, depois de ter ido até o alto, voltou com a vista perdida, que não vale mesmo a pena subir até lá? E se alguém tentasse retirar os seus laços, fazê-los subir, você acredita que, se pudessem agarrá-lo e executá-lo, não o matariam?
Glauco: Sem dúvida alguma, eles o matariam.
Sócrates: E agora, meu caro Glauco, é preciso aplicar exatamente essa alegoria ao que dissemos anteriormente. Devemos assimilar o mundo que apreendemos pela vista à estada na prisão, a luz do fogo que ilumina a caverna à ação do sol. Quanto à subida e à contemplação do que há no alto, considera que se trata da ascensão da alma até o lugar inteligível, e não te enganarás sobre minha esperança, já que desejas conhecê-la. Deus sabe se há alguma possibilidade de que ela seja fundada sobre a verdade. Em todo o caso eis o que me aparece tal como me aparece; nos últimos limites do mundo inteligível aparece-me a idéia do Bem, que se percebe com dificuldade, mas que não se pode ver sem concluir que ela é a causa de tudo o que há de reto e de belo. No mundo visível, ela gera a luz e o senhor da luz, no mundo inteligível ela própria é a soberana que dispensa a verdade e a inteligência. Acrescento que é preciso vê-la se quer comportar-se com sabedoria, seja na vida privada, seja na vida pública.
Glauco: Tanto quanto sou capaz de compreender-te, concordo contigo.
Autor: Platão (Livro VII da República).

Porquê a Grécia?


"Naquela cena, ocorrida anos atrás, indicaram-me a cadeira ao lado de uma senhora de idade que cobria os olhos com grandes óculos escuros. Era amável, elegante, falava um francês primoroso e, apesar dos grandes esforços para dissimulá-lo, em tudo aquilo que dizia e opinava transparecia sua vasta cultura. Foi somente na metade do encontro que reparei, pela grande precaução dela no manejo dos óculos, que era cega ou, na melhor das hipóteses, tinha uma visão limitada. Depois de nos despedirmos, averiguei que Jacqueline de Romilly era uma grande helenista, catedrática de grego clássico na École Normale e em Sorbonne, primeira mulher a ser eleita membro do Colégio da França e uma das poucas representantes do gênero feminino na Academia Francesa.
O primeiro livro de autoria dela que li, Pourquoi la Grèce?, me deslumbrou tanto quanto sua pessoa. Por mais que aquilo que ela diga e conte no livro tenha ocorrido há 25 séculos, sua atualidade é tão extraordinária que a leitura da obra deveria ser obrigatória hoje.
O livro passa em revista o milagroso século 5 antes da nossa era, no qual a história, a filosofia, a tragédia, a política, a retórica, a medicina e a escultura alcançam na Grécia seu apogeu, assentando as bases daquilo que, com o tempo, passaríamos a chamar de cultura ocidental.
Homero e Hesíodo são muito anteriores ao século 5 a.C. e há muitos artistas, pensadores e autores de comédias posteriores a esse marco temporal. O ensaio não hesita em retroceder ou avançar para incluí-los no legado grego, ainda que a maior parte daquilo que é chamado de "visita guiada através dos textos" se concentre nesse pequeno período de cem anos no qual o reduzido espaço do mundo helênico vive uma espécie de eclosão frenética, enlouquecida, de criatividade em todos os domínios do espírito, com ideias, modelos estéticos, padrões intelectuais, invenções e descobrimentos, graças aos quais a civilização do logos se distanciaria decisivamente de todas as demais culturas do passado e de sua época e, sem ter tal intenção nem tal consciência, transformaria para sempre a história do mundo.
Desenvolvimento. Jacqueline de Romilly mostra que na Grécia nasceram, ou ganharam uma realidade e um dinamismo nunca antes observado na vida social de povo nenhum, os fatores determinantes do progresso humano, como a democracia, a liberdade, o direito, a razão e a arte emancipados da religião, as ideias de igualdade, de soberania individual, de cidadania, e uma maneira absolutamente nova de relacionamento entre o homem e o além, e os deuses, bem como uma ideia de beleza e fealdade, de bondade e maldade, de felicidade e infortúnio que, apesar dos inevitáveis matizes e adaptações que lhes foram impostos pela história, seguem vigentes.
Ficamos maravilhados ao ver que um povo tão pequeno e tão pouco coeso politicamente, cheio de numerosas cidades e colônias distribuídas pela Europa e a Ásia Menor, que conservavam entre si uma imensa margem de autonomia, um povo tão instintivamente reticente em formar um império, em praticar o imperialismo e em submeter-se à prepotência de um tirano tenha sido capaz de deixar na história da humanidade uma marca tão profunda. Isso não foi um acidente nem obra do acaso. Houve razões para esse desenvolvimento e o livro de Jacqueline as faz desfilar diante de nossos olhos. Além de uma maneira de filosofar, explica ela, os diálogos socráticos e platônicos ensinaram aos seres humanos que conversar, falar em grupo, é uma maneira mais civilizada e ética de conviver do que dar ordens e obedecê-las, uma forma de comunicação que reconhece ou estabelece desde o início uma igualdade elementar. Assim foi surgindo a liberdade, domando o lado animal do ser humano e permitindo o nascimento de sua verdadeira humanidade.
Em Pourquoi la Grèce?, essa demonstração não aparece como um discurso abstrato, e sim por meio de comentários e citações literárias, porque, como sua autora não se cansa de repetir, tudo aquilo que constitui uma cultura clássica está essencialmente representado nas suas obras literárias, e a verdadeira crítica é aquela que examina a poesia, a narrativa, o teatro, os ensaios que uma sociedade produz na busca das verdades recônditas que alimentam sua imaginação e impregnam as aventuras e os personagens aos quais seus artistas deram vida para aplacar a sede do absoluto, de viver outras vidas, de seus povos.
É verdade que a Grécia de nossos dias é muito diferente. Nos 25 séculos transcorridos desde então seu povo vivenciou mais infortúnios e catástrofes do que a maioria dos demais: guerras externas e internas, ocupações, tiranias e segregações que várias vezes ameaçaram desintegrá-la.
Li no International Herald Tribune uma chocante descrição do estado da economia do país, dos grotescos privilégios desfrutados durante todos esses anos pelos seus armadores, banqueiros e empresários mais prósperos, enquanto o povo grego segue empobrecendo.
Diante desse panorama, o surpreendente não deveria ser o fato de muitos gregos terem votado em nazistas e extremistas de esquerda nas últimas eleições, e sim que ainda haja um número tão grande de gregos que creem na democracia, e também que as pesquisas de opinião para a próxima votação indiquem que os partidos de centro-esquerda, centro e centro-direita, que defendem a opção europeia, possam obter uma maioria e formar o novo governo.
Torço para que assim seja, porque, simplesmente, a Grécia não pode deixar de formar uma parte integral da Europa sem que esta se converta numa caricatura grotesca de si mesma, condenada ao mais retumbante fracasso.
A Europa nasceu ali, no pé da Acrópole, 25 séculos atrás, e tudo que ela tem de melhor, aquilo que ela mais aprecia e admira em si mesma, assim como as instituições democráticas, a liberdade e os direitos humanos têm sua distante raiz nesse pequeno rincão do velho continente, às margens do Egeu, onde a luz do sol é mais potente e o mar é mais azul.
A Grécia é o símbolo da Europa e os símbolos não podem desaparecer sem que aquilo que eles encarnam desmorone e se desfaça nessa confusão bárbara de irracionalidade e violência da qual a civilização grega nos tirou."
Crónica de Mario Vargas Llosa publicada no jornal "El País" em 3 de junho de 2012 e traduzida para o jornal "Estado de S. Paulo" por Augusto Calil

Pura delícia sem caminho

Eugénio de Andrade, por Bottelho

"Claro que deve ensinar-se a ler poesia. E quem a ensina pode começar por prevenir que não se comem silabas aos versos, porque são altamente venenosas. Um poema, como Paul Valery escreveu (Cahiers, II, Pléiade, pág. 1065), é uma longa hesitação entre som e sentido. Conta e Canta, dizia outro poeta, António Machado. Portanto, a sua leitura deve fazer-se em voz alta, porque todas aquelas palavras aguardam uma voz para tomarem forma e figura. Voz que terá em conta o que é inerente ao próprio poema: tom, ritmo, acenos, pausas e até dissonâncias. Depois, sem a menor ênfase, como quem fala de amigo, quem lê deve deixar-se levar por essa música, "pura delícia sem caminho"."

(Revista Relâmpago. A poesia no ensino. 2002, p.11-14)

"pura delícia sem caminho" é uma citação de Mallarmé:

Ô rêveuse, pour que je plonge
Au pur délice sans chemin,
Sache, par un subtil mensonge,
Garder mon aile dans ta main.

Une fraîcheur de crépuscule
Te vient à chaque battement
Dont le coup prisonnier recule
L'horizon délicatement.

Vertige ! voici que frissonne
L'espace comme un grand baiser
Qui, fou de naître pour personne,
Ne peut jaillir ni s'apaiser.

Sens-tu le paradis farouche
Ainsi qu'un rire enseveli
Se couler du coin de ta bouche
Au fond de l'unanime pli !

Le sceptre des rivages roses
Stagnants sur les soirs d'or, ce l'est,
Ce blanc vol fermé que tu poses
Contre le feu d'un bracelet.



Ó sonhadora, para que eu mergulhe,
Na pura delícia sem caminho,
Sabe, por uma subtil mentira,
Conservar minha asa em tua mão.

Um fervor de crepúsculo,
Chega a ti a cada batida,
Cujo golpe prisioneiro recua
O horizonte delicadamente.

Vertigem! Eis que estremece,
O espaço como um grande beijo
que louco por nascer para ninguém
Não pode jorrar nem sossegar.

Sentes o paraíso bravio
Como um riso enterrado
Escorrer do canto de tua boca
No fundo da unânime prega!

O cetro das margens róseas
Estagnantes sobre os entardeceres de ouro, o é,
Este branco vôo fechado que tu pousas,
Contra o fogo do bracelete.