segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Narciso

Narciso e Eco, pintura de John William Waterhouse

Cá em casa, os narcisos estão a abrir.
"Narciso, um jovem de extrema beleza, era filho do deus-rio Cephisus e da ninfa Liriope. No entanto, apesar de atrair e despertar cobiça nas ninfas e donzelas, Narciso preferia viver só, pois não havia encontrado ninguém que julgasse merecer seu amor. E foi o seu desprezo pelos outros que o derrotou.
Quando Narciso nasceu, sua mãe consultou o adivinho Tirésias que lhe predisse que Narciso viveria muitos anos desde que nunca conhecesse a si mesmo. Narciso cresceu tornando-se cada vez mais belo e todas as moças e ninfas queriam seu amor, mas ele desprezava a todas. Certo dia, enquanto Narciso descansava sob as sombras do bosque, a ninfa Eco se apaixonou por ele. Porém tendo-a rejeitado, as ninfas jogaram-lhe uma maldição: - Que Narciso ame com a mesma intensidade, sem poder possuir a pessoa amada. Nêmesis, a divindade punidora, escutou e atendeu ao pedido. Naquela região havia uma fonte límpida de águas cristalinas da qual ninguém havia se aproximado. Ao se inclinar para beber água da fonte, Narciso viu sua própria imagem refletida e encantou-se com sua visão. Fascinado, Narciso ficou a contemplar o lindo rosto, com aqueles belos olhos e a beleza dos lábios, apaixonou-se pela imagem semsaber que era a sua própria imagem refletida no espelho das águas.Por várias vezes Narciso tentou alcançar aquela imagem dentro da água mas inutilmente; não conseguia reter com um abraço aquele ser encantador. Esgotado, Narciso deitou na relva e aos poucos seu corpo foi desaparecendo. No seu lugar, surgiu uma flor amarela com pétalas brancas no centro que passou a se chamar, Narciso."
(retirado daqui)

Os campos são mais verdes no dizer-se do que no seu verdor


A literatura, que é a arte casada com o pensamento, e a realização sem a mácula da realidade, parece-me ser o fim para que deveria tender todo o esforço humano, se fosse verdadeiramente humano, e não uma superfluidade do animal. Creio que dizer uma coisa é conservar-lhe a virtude e tirar-lhe o terror. Os campos são mais verdes no dizer-se do que no seu verdor. As flores, se forem descritas com frases que as definam no ar da imaginação, terão cores de uma permanência que a vida celular não permite.
Mover-se é viver, dizer-se é sobreviver. Não há nada de real na vida que o não seja porque se descreveu bem. Os críticos da casa pequena soem apontar que tal poema, longamente ritmado, não quer, afinal, dizer senão que o dia está bom. Mas dizer que o dia está bom é difícil, e o dia bom, ele mesmo, passa. Temos pois que conservar o dia bom em uma memória florida e prolixa, e assim constelar de novas flores ou de novos astros os campos ou os céus da exterioridade vazia e passageira.
Tudo é o que somos, e tudo será, para os que nos seguirem na diversidade do tempo, conforme nós intensamente o houvermos imaginado, isto é, o houvermos, com a imaginação metida no corpo, verdadeiramente sido. Não creio que a história seja mais, em seu grande panorama desbotado, que um decurso de interpretações, um consenso confuso de testemunhos distraídos. O romancista é todos nós, e narramos quando vemos, porque ver é complexo como tudo.
Tenho neste momento tantos pensamentos fundamentais, tantas coisas verdadeiramente metafísicas que dizer, que me canso de repente, e decido não escrever mais, não pensar mais, mas deixar que a febre de dizer me dê sono, e eu faça festas com os olhos fechados, como a um gato, a tudo quanto poderia ter dito.
Autoria de Bernardo Soares (ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa) in "Livro do Desassossego", pág. 379.

Que ferro!


"Depois, de pé, com os olhos no tapete, agitando de vagar o copo novamente cheio onde a espuma morria, Ega tornou a murmurar, naquela entoação triste de inesperado desapontamento:
- Que ferro!...
E após um momento: 
- Pois menino, pensei que a Gouvarinho te apetecia..."
Eça de Queirós in "Os Maias"

domingo, 26 de janeiro de 2014

Marco Aurélio, o imperador filósofo

Busto de Marco Aurélio, jardins do Palácio de Versalhes
«Este livro, todo tecido de reflexões pessoais, tem radículas nos autores gregos bem assimilados - em Platão, em Homero, nos trágicos -, todos sobriamente citados, nunca para mostrar erudição, sempre para sublinhar a meditação pessoal de um homem que de tão alto viu o "desconcerto do mundo" e abriu, sem mais candeia que a luz da consciência acesa em pavio estóico, um tão nobre caminho nas sombras da vida. Nunca tão raramente se equivaleram palácio e choupana aos olhos de um meditador. A misantropia crepuscular escorre do pensamento da morte, da brevidade da vida, da fugacidade de prazeres e honrarias. (...) Mas que um imperador cumulado de riquezas e com mão desimpedida para a sacudir arbitrariamente por entre justiças e vinganças se recolha à cela íntima e aí entorne, num canhenho de reflexões a essência da própria alma - deve mover-nos a espanto e pena.» Do Prefácio de João Maia no livro "Pensamentos" de Marco Aurélio
Aqui pode encontrar-se uma tradução do livro a partir da versão inglesa.


sábado, 18 de janeiro de 2014

Um Adeus Português


UM ADEUS PORTUGUÊS
Nos teus olhos altamente perigosos

vigora ainda o mais rigoroso amor

a luz de ombros puros e a sombra

de uma angústia já purificada



Não tu não podias ficar presa comigo

à roda em que apodreço

apodrecemos

a esta pata ensanguentada que vacila

quase medita

e avança mugindo pelo túnel

de uma velha dor



Não podias ficar nesta cadeira

onde passo o dia burocrático

o dia-a-dia da miséria

que sobe aos olhos vem às mãos

aos sorrisos

ao amor mal soletrado

à estupidez ao desespero sem boca

ao medo perfilado

à alegria sonâmbula à vírgula maníaca

do modo funcionário de viver



Não podias ficar nesta cama comigo

em trânsito mortal até ao dia sórdido

canino

policial

até ao dia que não vem da promessa

puríssima da madrugada

mas da miséria de uma noite gerada

por um dia igual



Não podias ficar presa comigo

à pequena dor que cada um de nós

traz docemente pela mão

a esta pequena dor à portuguesa

tão mansa quase vegetal



Não tu não mereces esta cidade não mereces

esta roda de náusea em que giramos

até à idiotia

esta pequena morte

e o seu minucioso e porco ritual

esta nossa razão absurda de ser



Não tu és da cidade aventureira

da cidade onde o amor encontra as suas ruas

e o cemitério ardente

da sua morte

tu és da cidade onde vives por um fio

de puro acaso

onde morres ou vives não de asfixia

mas às mãos de uma aventura de um comércio puro

sem a moeda falsa do bem e do mal 
*
Nesta curva tão terna e lancinante

que vai ser que já é o teu desaparecimento

digo-te adeus
e
como um adolescente

tropeço de ternura

por ti.
Alexandre O’Neill, No Reino da Dinamarca, 1958

“Quando escrevi «Um Adeus Português», há quase quarenta anos, estava a sofrer pressões inacreditáveis, por parte de alguém da minha família, para não «ir atrás da francesa». A francesa, a minha querida e já falecida amiga Nora Mitrani, queria que eu fosse ter com ela a Paris, onde vivia. «Vens, ficas cá e depois se vê», era o que o seu otimismo me dizia por carta. Mas as coisas não se passaram assim. 
A pressão (ou, melhor, a perseguição) chegou ao ponto de ter sido metida uma cunha à polícia política para que o passaporte me fosse denegado, o que aconteceu, não sem que eu, primeiro, tivesse sido convocado para a própria sede dessa polícia e interrogado pelo subinspetor Seixas. Seixas usou comigo de uma linguagem descomedida. Perguntou-me que ia eu fazer a Paris. Respondi: Turismo.
Quis saber se eu conhecia a senhora N. M. Eu disse que sim. Então Seixas retorquiu: Se calhar V. quer ir porque essa gaja lhe meteu alguma coisa na cachola. Com a serenidade que me foi possível, fiz-lhe saber que se enganava, que N. M. não era uma gaja e que eu não tinha cachola. Pareceu surpreendido. Depois, irritado, mandou-me sair. E assim estive anos sem conseguir passaporte.
Claro que o poema não se gerou apenas desta situação, mas ela contribuiu poderosamente, com outros fatores circunstanciais bem conhecidos, para que o poema aparecesse. Era uma época em que tudo cheirava e sabia a ranço, em que o amor era vigiado e mal tolerado, em que um jovem não era senhor dos seus passos (errados ou certos, não interessa).
Semanas depois, «nascia» o poema e, com ele publicado, uma relativa notoriedade. É que o poema, ingénuo como é, tem realmente a força do nojo e do desespero combinados com um derrame/contenção sentimental que não mais igualei. Então, durante algum tempo, fiquei conhecido como o poeta de «Um Adeus Português».
A minha amiga, que não voltei a ver (quando a fui procurar em Paris já tinha morrido), ainda tomou conhecimento deste poema. Escreveu-me: «Li o teu Adeus. Fiquei atrozmente comovida.»
Claro que um poema não é feito de nojos, desesperos e derrames sentimentais, mas, no caso, a felicidade de expressão foi vivamente alimentada por uma raiva e um amor desmesurados, quer dizer, adolescentes. E o poema foi ficando e passando para as antologias.
Explico tudo isto porque outro dia me chegou às mãos um número da Europe dedicado à literatura de Portugal. E lá aparece, numa tradução bastante pobre, o tal «Adeus... ». Não é que, na nota proemial, em que me definem como sarcástico, desesperado e terno, dizem que o poema foi inspirado por Nora Mitrani! Eu acho que, por enquanto, isso é comigo. Também o João Botelho (o do excelente filme Conversa Acabada) me telefonou a pedir-me autorização para usar o título do poema para título de um novo filme seu. Dei-lha logo. E nem sequer lhe perguntei se o que ele vai fazer tem a ver com o poema ou não. Isso é lá com ele. Como, insisto, é só comigo que Nora Mitrani tenha sido ou não a inspiradora de «Um Adeus Português». Pelo menos antes da presente explicação.
Tempos."
Alexandre O’Neill, Jornal de Letras, Artes e Ideias, n.º 94, 1984

Retirado daqui

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Se Numa Noite de Inverno Um Viajante

Na livraria folheei um livro. As "Seis propostas para o próximo milénio" (pdf disponível na net) tinham-me despertado o interesse para este autor e para a sua (das propostas) eventual concretização (num livro).
Já agora, o autor é Italo Calvino e as propostas são: leveza, rapidez, exatidão, visibilidade, multiplicidade e consistência.
Comecei a ler:
"O romance começa numa estação ferroviária, ronca uma locomotiva, um arfar de êmbolo tapa a abertura do capítulo, uma nuvem de fumo esconde parte do primeiro parágrafo. Pelo meio do cheiro a estação passa uma lufada de cheiro a bufete de estação. Está alguém a olhar pelos vidros embaciados, abre a porta envidraçada do bar, lá dentro também está tudo enevoado, como que visto por olhos de míope, ou então por olhos irritados com ciscos de carvão. São as páginas do livro que estão embaciadas como as janelas de um velho comboio, é nas frases que pousa a nuvem de fumo. É uma noite de chuva: o homem entra no bar; desabotoa o sobretudo húmido; envolve-o uma nuvem de vapor; um silvo põe-se a correr pelos carris brilhantes da chuva a perder de vista."
Fiquei convencido. Tinha de levar aquele livro para casa para poder continuar a ler. Assim foi e assim está a ser.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Saramago criticou Gertrude Stein

Pablo Picasso, Portrait of Gertrude Stein, 1906, Metropolitan Museum of Art, New York
(When someone commented that Stein didn't look like her portrait, Picasso replied, "She will". Stein wrote "If I Told Him: A Completed Portrait of Picasso" in response to the painting.) (Wikipedia)
“Raimundo Silva acendeu o candeeiro da mesa, a rápida luz por um momento pareceu apagar as rosas, depois elas reapareceram como se a si mesmas se reconstituíssem, porém sem aura nem mistério, ao contrário do que se julga e pôs a correr foi um botânico o autor da célebre frase, Uma rosa é uma rosa é uma rosa, um poeta teria dito apenas, Uma rosa, o resto caberia no silêncio de contemplá-la.” (José Saramago, "História do Cerco de Lisboa", pág. 244)
“Uma rosa é uma rosa é uma rosa” não é uma frase de um botânico, é um verso de um poema de Gertrude Stein (1874-1946). Americana que viveu em Paris desde 1903, foi uma figura incontornável do meio artístico parisiense nos anos 20 e 30. Do seu círculo de amigos faziam parte: Picasso, Matisse. Braque, Derain, Juan Gris, Apollinaire, Max Jacob, Erik Satie, Jean Cocteau, Ernest Hemingway, Scott Fitzgerald entre outros. James Joyce não se submeteu à figura tutelar de Gertrude Stein e foi por ela depreciado. Escreveu Gertrude Stein, em 1924: "Quem apareceu primeiro, Gertrude Stein ou James Joyce? Não se esqueçam que o meu primeiro grande livro, «Three Lives», foi publicado em 1908. Muito antes de "Ulisses". Não nego que Joyce fez qualquer coisa mas a sua influência é apenas local. A sua hora já passou tal como aconteceu com Synge, outro escritor irlandês."(Helena Vasconcelos in Storm Magazin)
Hemingway, no livro “Paris é uma Festa” fala de Gertrude Stein e da sua residência, onde ia assiduamente. Também Woody Allen a inclui como personagem do filme “Meia-noite em Paris”.
Obviamente, Saramago faz uma crítica velada a Gertrude Stein.

"Destino" de Beethoven


Retrato feito por Joseph Karl Stieler, em 1820
“Passava pouco das cinco horas, a campainha tocou. Um toque leve, como de passagem, que precisamente fez correr Raimundo Silva à porta como se tivesse medo de que fosse uma vez para nunca mais, só na sinfonia de Beethoven o destino chama e torna a chamar, na vida não é assim, há ocasiões em que tivemos a impressão de que alguém estava lá fora à espera, e quando fomos ver não era ninguém, e há outras em que chegámos apenas um segundo tarde de mais, e tanto fazia, a diferença é que, neste caso, ainda podemos ficar a perguntar-nos, Quem terá sido, e levar o resto da vida a sonhar com isso.” (José Saramago, "História do Cerco de Lisboa", pág. 257/258)
Vejamos o que escreveu Aline Guimarães, site do Conservatório de Música Mozart (Baía):
"Durante o Romantismo, a Literatura, a Pintura, a Música, enfim, as artes, vivem a apoteose do sentimento. Tudo é muito pessoal e as emoções dominam o cenário, sempre muito intenso. Nesse post quero acompanhar com vocês, três momentos musicais que transmitem essas sensações apaixonadas, nostálgicas e embriagantes que determinam o Romantismo.
Comecemos ouvindo o primeiro movimento da Sinfonia nº 5 de Ludwig Van Beethoven, ele que foi um ícone do seu século e um vanguardista das harmonias. A 5ª Sinfonia é também chamada de “Destino”, numa alusão às quatro notas que se repetem como motivo melódico em toda a obra. Dizem por aí que essas notas foram inspiradas por uma batida à porta do mestre Beethoven, que disse: “Assim nos chama o destino…” Nessa sinfonia, ele consegue transmitir toda a fúria das paixões e das arrebatadoras transformações revolucionárias. (...)"

domingo, 12 de janeiro de 2014

O íntimo rumor que abre as rosas

"É tão fundo o silêncio entre as estrelas.
Nem o som da palavra se propaga,
Nem o canto das aves milagrosas.
Mas, lá, entre as estrelas, onde somos
Um astro recriado, é que se ouve
O íntimo rumor que abre as rosas."
José Saramago, "Provavelmente Alegria", 1970


"Trago-lhe aqui as provas, como combinámos, disse Raimundo Silva, e a doutora Maria Sara recebeu-as, por assim dizer, à passagem, agora está sentada à secretária, convidou o revisor a que se sentasse, mas ele respondeu: Não vale a pena, e desviou o olhar para a rosa branca, tão perto dela está que pode ver-lhe o coração suavíssimo, e, porque palavra puxa palavra, lembra-se de um verso que em tempos revira, um que falava do íntimo rumor que abre as rosas, pareceu-lhe este um formoso dizer, venturas que podem acontecer até a poetas medíocres, O íntimo rumor que abre as rosas, repetiu consigo mesmo, e ouviu, ainda que não se acredite, o roçar inefável das pétalas, ou teria sido o roçar da manga contra a curva do seio, meu Deus, tende piedade dos homens que vivem de imaginar." 
José Saramago, "História do Cerco de Lisboa", pág. 169/170.

sábado, 11 de janeiro de 2014

Memórias da gentil angústia de Ingmar Bergman


É a rara ocasião de nos vermos reflectidos na nossa nudez – a de seres humanos que riem, amam, choram, se divertem e se angustiam. No Nimas, em Lisboa, até Abril, no Teatro do Campo Alegre, no Porto, a partir de Fevereiro, Ingmar Bergman. Dezassete filmes, entre A Prisão e Fanny e Alexandre. A angústia protestante, o frio sueco, são uma capa: por baixo dela, a nossa nudez. 
(...) 
Pensar que Ingmar Bergman é coisa para “intelectuais” é um disparate: os filmes de Bergman tocam, e dizem respeito, a quem quer que seja feito de carne, osso e um cérebro. A angústia protestante, o frio sueco, são uma capa: por baixo dela, a nossa nudez.
(Luís Miguel Oliveira no Público)

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

O cavaleiro do balde


“O carvão gasto; o balde vazio; a pá sem sentido; o fogão respirando frio; o quarto embaciado de gelo; frente à janela, as árvores rígidas de geada; o céu um escudo de prata contra quem quiser a sua ajuda. Tenho de arranjar carvão; não posso morrer gelado; atrás de mim o fogão impiedoso, adiante o céu impiedoso, por isso tenho de cavalgar, cortante, entre ambos, e na viagem procurar a ajuda do carvoeiro.”
KAFKA. “Der Kübelreiter”. (excerto transcrito por Luisa Costa Gomes no conto "Mania")

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

Portugal, protetorado inglês


História de Portugal de Joaquim Pedro de Oliveira Martins

Oliveira Martins, na sua História de Portugal (3ª edição, em 1882), escreve:

"Pelo tratado de 1654 a Inglaterra ficara-nos possuindo; por este de 1661 tutelou-nos, declarando-nos pródigos e ineptos; encarregava-se de nos defender, mas, como bom tutor, vendeu-nos. (...) Da longa campanha diplomática da Restauração através de todos os incidentes, holandeses e franceses, resultava este facto que ficou pesando por dois séculos sobre o novo Portugal: o protetorado inglês. Protetorado, sempre se traduziu, na linguagem real da história, por exploração: é um eufemismo diplomático."

Palavras duras as de Oliveira Martins mas certeiras. Creio que por pudor não são hoje os historiadores tão claros nas suas afirmações.
A magnifica obra de Oliveira Martins pode ser consultada aqui
Ou na ortografia atual aqui
Uma apresentação do livro encontra-se aqui
Os excertos aqui apresentados foram retirados da página 137 do 2º volume da obra.

quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

O exemplo uruguaio



La libertad tiene sus riesgos y quien cree en ella debe estar dispuesto a correrlos. Así lo ha entendido el Gobierno de José Mujica al legalizar la marihuana y el matrimonio gay. Y hay que aplaudirlo
Ha hecho bien The Economist en declarar a Uruguay el país del año y en calificar de admirables las dos reformas liberales más radicales tomadas en 2013 por el Gobierno del presidente José Mujica: el matrimonio gay y la legalización y regulación de la producción, la venta y el consumo de la marihuana.
Es extraordinario que ambas medidas, inspiradas en la cultura de la libertad, hayan sido adoptadas por el Gobierno de un movimiento que en su origen no creía en la democracia sino en la revolución marxista leninista y el modelo cubano de autoritarismo vertical y de partido único. Desde que subió al poder, el presidente José Mujica, que en su juventud fue guerrillero tupamaro, asaltó bancos y pasó muchos años en la cárcel, donde fue torturado durante la dictadura militar, ha respetado escrupulosamente las instituciones democráticas —la libertad de prensa, la independencia de poderes, la coexistencia de partidos políticos y las elecciones libres— así como la economía de mercado, la propiedad privada y alentado la inversión extranjera. Esta política del anciano y simpático estadista que habla con una sinceridad insólita en un gobernante, aunque ello le signifique meter la pata de cuando en cuando, vive muy modestamente en su pequeña chacra de las afueras de Montevideo y viaja siempre en segunda clase en sus viajes oficiales, ha dado a Uruguay una imagen de país estable, moderno, libre y seguro, lo que le ha permitido crecer económicamente y avanzar en la justicia social al mismo tiempo que extendía los beneficios de la libertad en todos los campos, venciendo las presiones de una minoría recalcitrante de la alianza.
Hay que recordar que Uruguay, a diferencia de la mayor parte de los países latinoamericanos, tiene una antigua y sólida tradición democrática, al extremo de que, cuando yo era niño, se llamaba al país oriental “la Suiza de América” por la fuerza de su sociedad civil, el arraigo de la legalidad y unas Fuerzas Armadas respetuosas de los gobiernos constitucionales. Además, sobre todo después de las reformas del batllismo, que reforzaron el laicismo y desarrollaron una poderosa clase media, la sociedad uruguaya tenía una educación de primer nivel, una muy rica vida cultural y un civismo equilibrado y armonioso que era la envidia de todo el continente.
Yo recuerdo la impresión que significó para mí conocer Uruguay hacia mediados de los años sesenta. No parecía uno de los nuestros ese país donde las diferencias económicas y sociales eran mucho menos descarnadas y extremas que en el resto de América Latina y en el que la calidad de la prensa escrita y radial, sus teatros, sus librerías, el alto nivel del debate político, su vida universitaria, sus artistas y escritores —sobre todo, el puñado de críticos y la influencia que ejercían en los gustos del gran público— y la irrestricta libertad que se respiraba por doquier lo acercaban mucho más a los más avanzados países europeos que a sus vecinos. Allí descubrí el semanario Marcha, una de las mejores revistas que he conocido, y que se convirtió para mí desde entonces en una lectura obligatoria para estar al tanto de lo que ocurría en toda América Latina.
Sin embargo, ya en aquel tiempo había comenzado a deteriorarse esa sociedad que daba al forastero la impresión de estar alejándose cada vez más del tercer mundo y acercándose cada vez más al primero. Porque, pese a todo lo bueno que allí ocurría, muchos jóvenes, y algunos no tan jóvenes, sucumbían a la fascinación de la utopía revolucionaria e iniciaban, según el modelo cubano, las acciones violentas que destruirían aquella “democracia burguesa” para reemplazarla no por el paraíso socialista sino por una dictadura militar de derecha que llenó las cárceles de presos políticos, practicó la tortura y obligó a exiliarse a muchos miles de uruguayos. El drenaje de talento y de sus mejores profesionales, artistas e intelectuales que padeció el Uruguay en aquellos años fue proporcionalmente uno de los más críticos que haya vivido en la historia un país latinoamericano. Sin embargo, la tradición democrática y la cultura de la legalidad y la libertad no se eclipsaron del todo en aquellos años de terror y, al caer la dictadura y restablecerse la vida democrática, florecerían de nuevo con más vigor y, se diría, con una experiencia acumulada que sin duda ha educado tanto a la derecha como a la izquierda, vacunándolas contra las ilusiones violentistas del pasado.
De otro modo no hubiera sido posible que la izquierda radical, que con el Frente Amplio y los tupamaros llegara al poder, diera muestras, desde el primer momento, de un pragmatismo y espíritu realista que ha permitido la convivencia en la diversidad y profundizado la democracia uruguaya en lugar de pervertirla. Ese perfil democrático y liberal explica la valentía con que el Gobierno del presidente José Mujica ha autorizado el matrimonio entre parejas del mismo sexo y convertido a Uruguay en el primer país del mundo en cambiar radicalmente su política frente al problema de la droga, crucial en todas partes, pero de una agudeza especial en América Latina. Ambas son reformas muy profundas y de largo alcance que, en palabras de The Economist, “pueden beneficiar al mundo entero”.
El matrimonio entre personas del mismo sexo, ya autorizado en varios países del mundo, tiende a combatir un prejuicio estúpido y a reparar una injusticia por la que millones de personas han padecido (y siguen padeciendo en la actualidad) arbitrariedades y discriminación sistemática, desde la hoguera inquisitorial hasta la cárcel, el acoso, marginación social y atropellos de todo orden. Inspirada en la absurda creencia de que hay solo una identidad sexual “normal” —la heterosexual— y que quien se aparta de ella es un enfermo o un delincuente, homosexuales y lesbianas se enfrentan todavía a prohibiciones, abusos e intolerancias que les impiden tener una vida libre y abierta, aunque, felizmente, en este campo, por lo menos en Occidente, se han ido desmoronando los prejuicios y tabúes homofóbicos y reemplazándolos la convicción racional de que la opción sexual debe ser tan libre y diversa como la religiosa o la política, y que las parejas homosexuales son tan “normales” como las heterosexuales. (En un acto de pura barbarie, el Parlamento de Uganda acaba de aprobar una ley estableciendo la cadena perpetua para todos los homosexuales).
Respecto a las drogas prevalece todavía en el mundo la idea de que la represión es la mejor manera de enfrentar el problema, pese a que la experiencia ha demostrado hasta el cansancio que no obstante la enormidad de recursos y esfuerzos que se han invertido en reprimirlas, su fabricación y consumo siguen aumentando por doquier, engordando a las mafias y la criminalidad asociada al narcotráfico. Este es en nuestros días el principal factor de la corrupción que amenaza a las nuevas y a las antiguas democracias y va cubriendo las ciudades de América Latina de pistoleros y cadáveres.
¿Será exitoso el audaz experimento uruguayo de legalizar la producción y el consumo de la marihuana? Lo sería mucho más, sin ninguna duda, si la medida no quedara confinada en un solo país (y no fuera tan estatista) sino comprendiera un acuerdo internacional del que participaran tanto los países productores como consumidores. Pero, aun así, la medida va a golpear a los traficantes y por lo tanto a la delincuencia derivada del consumo ilegal y demostrará a la larga que la legalización no aumenta notoriamente el consumo sino en un primer momento, aunque luego, desaparecido el tabú que suele prestigiar a la droga ante los jóvenes, tienda a reducirlo. Lo importante es que la legalización vaya acompañada de campañas educativas —como las que combaten el tabaco o explican los efectos dañinos del alcohol— y de rehabilitación, de modo que quienes fuman marihuana lo hagan con perfecta conciencia de lo que hacen, al igual que ocurre hoy día con quienes fuman tabaco o beben alcohol.
La libertad tiene sus riesgos y quienes creen en ella deben estar dispuestos a correrlos en todos los dominios, no sólo en el cultural, el religioso y el político. Así lo ha entendido el Gobierno uruguayo y hay que aplaudirlo por ello. Ojalá otros aprendan la lección y sigan su ejemplo.
(Mario Vargas Llosa, El País, 29-12-2013)

Sempre vigilantes!


Crónica de Frei Bento Domingues


Um Cristo formatado?
Pretender despolitizar o discurso económico e torná-lo tecnocrático e apartidário é um embuste.
1. “Esta é a definição da lei: algo que pode ser transgredido”. Assim falava, no seu gosto pelos paradoxos, o grande escritor católico, Gilbert K.Chesterton (1874-1936). Partindo da convicção de que a Deus nada é impossível, as comunidades cristãs, sobretudo as do primeiro século, elaboraram narrativas sobre o percurso de Jesus Cristo - desde a anunciação à ressurreição – que parecem contrariar, sem necessidade, as mais respeitáveis e inocentes leis da natureza. 
A este respeito, importa não esquecer que a linguagem mítica e simbólica da liturgia do Natal não pretende dar aulas de biologia e astronomia, mas subverter as leis de um mundo dominado pela injustiça. Quando os Evangelhos são interpretados em registo literal, em vez de provocarem a inteligência, a imaginação e os afectos, paralisam-nos e tornam-se charadas absurdas, até naquilo que têm de mais belo e subversivo. A letra mata. O espírito livre vivifica. 
Esta observação não desvaloriza, porém, a importância do método histórico-crítico aplicado aos escritos do Novo Testamento. Ao procurar esclarecer a produção dos textos bíblicos, nas suas diferentes etapas, descobre-se o ridículo das leituras fundamentalistas e que a pluralidade de interpretações não brota da arbitrariedade.
Passada a decepção com as “biografias liberais” de Jesus, do séc. XIX e os estudos pós-bultmanianos da década de 50 do século passado, vários exegetas célebres desenvolvem a “terceira vaga” de investigações sobre o “Jesus da história”. A obra monumental, de John P. Meier, “Jesus, um Judeu marginal”, impôs-se como referência incontornável. No entanto, como ele próprio confessa, o Jesus reconstruido pela investigação histórica – dada a natureza das fontes disponíveis – não pode sondar todas as dimensões da sua realidade. J. Meier alimenta a fantasia da reunião de um “conclave sem papa” e que ele próprio configurou: um católico, um protestante, um judeu e um agnóstico - todos historiadores honestos e bem informados sobre os movimentos religiosos do século I – ficariam trancados, na biblioteca da Harvard Divinity School, submetidos a uma dieta espartana e só lhes seria permitido reaparecer, quando tivessem elaborado um documento de consenso, sobre Jesus de Nazaré.
Um requisito essencial desse documento seria o de basear-se em fontes e argumentações puramente históricas. As suas conclusões deveriam ser abertas à verificação de todas e quaisquer pessoas sinceras, com acesso aos meios da moderna pesquisa histórica. Esse documento não teria a pretensão de apresentar uma interpretação completa, final e definitiva sobre Jesus, a sua obra e as suas intenções. Poderia, no entanto, proporcionar uma base comum e um ponto de partida academicamente respeitáveis para o diálogo entre pessoas de várias crenças ou sem crença alguma. J. Meier talvez goste de um Jesus marginal, mas não muito!
2. Esse empreendimento pode ter a sua utilidade, sobretudo para enfraquecer os delírios teológicos estacionados em definições dogmáticas, como alfândegas da fé. Mas não estou nada interessado num Jesus normalizado, formatado e em repouso num museu da história do cristianismo. Os escritos cristãos falam da sua presença clandestina, onde e quando menos se espera, baseados na promessa de que Ele não desertará da nossa vida.
Muito se escreveu acerca do mundo em que Jesus nasceu e cresceu, e onde se difundiram as comunidades cristãs dos séculos primeiro e segundo. Funcionavam “em rede”. Quando o Imperador Constantino entrou em cena, no séc. III, foi porque ele próprio se deu conta que mais valia ter os cristãos do seu lado do que persegui-los.
Os monges não foram para o Deserto por terem desistido da evangelização do mundo, mas porque se consideravam marginais em relação a uma cristandade adulterada por privilégios. Em vez de se instalarem no Poder, preferiram recusá-lo. Sabiam que ao esquecer o Cristo crucificado na carne dos sacrificados pelos interesses dos poderosos, acabariam na adoração de um Deus do Poder que tudo justifica.
3. O Papa Francisco denunciou os efeitos da economia que mata. Muitos se apressaram a dizer que ele não percebia nada de economia e a sua “Exortação Apostólica” era gravemente desmobilizadora quando já estavam à vista os belos frutos da austeridade, que importa não abrandar. Paul Krugman, Prémio Nobel de economia, em 2008, mostrou, no passado Domingo (cf. El País), as consequências desastrosas, nos EUA, da correlação entre os cortes nos programas sociais, o crescimento das desigualdades e o aumento da dívida. São os interesses e preconceitos de uma elite económica, cuja influência política disparou ao mesmo tempo que a sua riqueza, que procuram ocultar essa realidade. Pretender despolitizar o discurso económico e torná-lo tecnocrático e apartidário é um embuste. A classe social e a desigualdade modelam e distorcem o debate.
Será possível uma economia amiga das pessoas? Manuela Silva mostra que sim (cf. rev. Communio, XXX (2013).
Bom ano!
(Público de 29-12-2013)