segunda-feira, 22 de julho de 2013

Claudio Magris venceu o Prémio Europeu Helena Vaz da Silva


É um dos grandes intelectuais europeus da actualidade, um eterno candidato ao Nobel da Literatura. O escritor italiano Claudio Magris, de 74 anos, venceu o primeiro Prémio Europeu Helena Vaz da Silva para a divulgação do Património Cultural, instituído pela Europa Nostra, em parceria com o Centro Nacional de Cultura e o Clube Português de Imprensa.
À hora em que o prémio foi este domingo anunciado, Claudio Magris, ensaísta especializado nos grandes dilemas da Europa, autor de obras tão conhecidas e aplaudidas pela crítica como Danúbio (Dom Quixote), passeava-se (e passeia) pelo alto mar. Mas não partiu para longe do mundo que tanto analisa sem antes ter deixado uma mensagem de agradecimento por mais uma distinção.
Numa carta endereçada ao júri, presidido por Guilherme d’Oliveira Martins (presidente do Centro Nacional de Cultura), Claudio Magris expressou a “mais profunda gratidão por este grande, generoso e totalmente inesperado reconhecimento”, que, acrescenta. “chega de um país que sempre esteve presente na minha fantasia, nos meus interesses, no meu imaginário”.
“Não sou um lusitanista e infelizmente não falo português, mas a história, a civilização e a literatura desse pequeno grande país sempre desempenharam para mim um importante papel, sempre me estiveram presentes.” E continua, na nota enviada ao PÚBLICO: “Talvez porque se trata de uma enorme civilização de mar, elemento essencial da minha sensibilidade e do meu ser, de um pequeno país que se tornou num império do mundo – no mais lato sentido do termo e não só no político – e como poucos outros foi um teatro de encontro, e como sempre também de confronto, em suma, um palco de protagonismo no grande teatro do mundo”.
A ligação do escritor italiano a Portugal há muito tempo que é conhecida. Em 2011, Claudio Magris assinou até o prefácio da reedição da Caminho de A Viagem a Portugal, de José Saramago. Magris lembrou no prefácio que, quando se encontrou pela primeira vez com Saramago em Lisboa, foi este o livro que o Nobel da Literatura lhe ofereceu.
Nascido em Trieste em 1939, Claudio Magris tem uma extensa obra dedicada ao ensaio, ao romance e ao relato de viagens. O italiano é ainda professor de literatura alemã e tradutor, colaborando ainda com regularidade para o jornal italiano Corriere della Sera. Como diz ao PÚBLICO Guilherme d’Oliveira Martins, “além de um grande escritor, Claudio Magris é um homem da comunicação”.
O prémio agora entregue a Magris pretende anualmente distinguir um cidadão europeu que, ao longo da sua carreira, se tenha distinguido pela sua actividade de divulgação, defesa e promoção do património cultural europeu através de obras literárias, artigos, crónicas, fotos, séries documentais, filmes e programas de rádio e/ou de televisão publicados ou emitidos nos diversos meios de comunicação.
É por isso que, para Guilherme d’Oliveira Martins, “faz todo o sentido premiar Claudio Magris nesta primeira edição”. “É um escritor com uma noção de património que não se projecta apenas no passado como se estende ao presente. Tem uma escrita plural, tolerante e promotora de uma cultura europeia”, diz ao PÚBLICO o presidente do júri, composto por Antonio Foscari, Francisco Pinto Balsemão, Irina Subotic, João David Nunes, José María Ballester e Piet Jaspaert.
No comunicado, o júri destaca exactamente o conhecimento que Claudio Magris tem da Europa “enquanto espaço de diálogo e de intercâmbio cultural é muito perceptível, especialmente na sua obra sobre o Danúbio", cujo tema principal é uma incursão e um pretexto para explorar e dissertar sobre a cultura centro-europeia, "mas igualmente em toda a sua rica produção literária”.
“Através dos seus textos tem contribuído para a tolerância e a paz europeia. Magris é alguém que tem reflectido ao longo da vida sobre os temas de identidade como factores de entendimento, valores tão importantes nos dias de hoje”, acrescenta ainda ao Guilherme d’Oliveira Martins, que em Outubro entregará o prémio no valor de dez mil euros ao escritor italiano numa cerimónia que vai acontecer na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa.
Sendo a Europa um dos temas sobre os quais mais se debruça, Claudio Magris foi um dos intelectuais que no início do ano assinou o manifesto internacional chamado Europa ou o caos. Uma denúncia do vertiginoso crescimento do "cinismo", "chauvinismo" e populismo" e que começava por dizer que “a Europa não está em crise, está a morrer”.
“Não a Europa como território, naturalmente. A Europa como Ideia. A Europa como um sonho e um projecto”, diz o início do texto assinado ainda pelo escritor português António Lobo Antunes, Bernard-Henri Lévy (autor francês), Vassilis Alexakis (escritor grego), Juan Luis Cebrián (jornalista espanhol e fundador do El País), Umberto Eco (intelectual italiano), Salman Rushdie (romancista indiano), Fernando Savater (filósofo espanhol), Peter Schneider (romancista alemão), Hans Christoph Buch (jornalista e autor alemão), Julia Kristeva (filósofa búlgaro-francesa) e Gÿorgy Konrád (ensaísta húngaro).

(Artigo da autoria de Cláudia Carvalho, publicado no site do jornal Público)

sábado, 20 de julho de 2013

Últimas palavras


Quando chegava o verão, o avô lembrava-se finalmente das crianças da casa. Durante todo o ano elas eram-lhe aparentemente indiferentes, mesmo nas festas de aniversário, mesmo no Natal, mesmo quando a avó dizia que alguma delas estava com febre.
Dava o dinheiro para as prendas quando era caso disso, perguntava se já tinham telefonado para o médico – mas nem perdia tempo a ouvir a resposta.
Mas quando o verão chegava, o avô instalava-se debaixo do limoeiro do jardim e escrevia frases. Muitas frases. Depois chamava-as e pedia-lhes a opinião. As crianças eram muito pequenas, encolhiam os ombros, e riam sem perceber nada. Mas o avô não se ria. O avô punha um ar muito sério e dizia que estava ali toda a sabedoria do mundo, e que era assim que se crescia.
Durante as longas tardes de verão, o avô inventava frases. Frases importantes e únicas, dizia ele. «Quando desaparecermos», repetia, «seremos lembrados sempre por aquilo que dissermos.» Depois costumava citar exemplos de colegas ilustres. «Passa-me os óculos – foi a última frase do Fernando Pessoa», dizia o avô muitas vezes, e as crianças riam ainda mais, porque nenhuma delas sabia quem era o Fernando Pessoa e, além disso, não acreditavam que alguém pudesse ficar conhecido só por ter dito uma frase igualzinha à que a velha Josefina andava sempre a dizer, porque nunca sabia onde é que deixava as coisas. Mas o avô garantia que sim, «as palavras que dizemos é o que de nós fica quando partirmos», e por isso passava horas debaixo do limoeiro do jardim, vendo toda a gente ir para a praia, e ele a inventar frases dignas de serem recordadas. «Frases únicas», repetia. [...] A mãe às vezes ainda insistia, «ó pai, venha lá até à praia!», mas ele que não, que não podia ser, que não tinha tempo a perder, daqui a nada vinha o outono [...]. A mãe abanava a cabeça, e ele ficava, debaixo do limoeiro, com o caderninho de capa de oleado muito perto dos olhos, escrevendo, escrevendo, escrevendo.
Um dia, estavam as crianças já muito bronzeadas da praia, o avô chamou-as e disse: «Vou morrer amanhã.» E, como sempre, elas riram muito, «essa não é má, avô, é melhor do que pedir os óculos!». E o avô continuou: «O meu coração não vai aguentar as primeiras chuvas.» E elas, «e quem é que falou em chover, avô? Está um sol que é uma beleza»; e ele, «entrou o inverno no limoeiro», e elas olharam umas para as outras e pensaram que, tal como a mãe murmurava às vezes para o pai, pensando que ninguém a ouvia, o avô já não dizia coisa com coisa.
Nessa noite a casa encheu-se de barulhos estranhos, e a Josefina entrou no quarto das crianças dizendo-lhes que não tivessem medo, e que ficassem muito quietas na cama, e que tentassem adormecer.
No dia seguinte, o céu estava cheio de nuvens e o jardim alagado da chuva que caíra de madrugada. «O vento deitou abaixo o limoeiro», disse Josefina, enquanto lhes punha o leite nas canecas. As crianças olharam umas para as outras. E nenhuma delas precisou de perguntar pelo avô.
Foi nesse verão que se tornaram adultos.
Mas isso só o compreenderam muitos anos depois.
Alice Vieira, «Últimas Palavras», Bica Escaldada, Lisboa, Editorial Notícias, 2004
(texto incluído na prova de Português do 12º ano, 2013, 2ª fase)