terça-feira, 6 de março de 2012

O dom das lágrimas, por Inês Pedrosa

Uma turma de crianças surdas escreveu um conto premiado no Festival Correntes d’Escritas da Póvoa de Varzim.

O vereador da Cultura pediu que, em vez de bater palmas às crianças que subiam ao palco, o público agitasse as mãos no ar, aplaudindo em linguagem gestual a excelência dos vencedores.

Uma longa onda de mãos criou naquele auditório municipal um momento eterno de silêncio e lágrimas. Chorávamos de alegria e orgulho. Honrávamos com as nossas lágrimas a excelência daqueles garotos e da sua professora. O choro pode ser um abraço que perdura.

Não chora quem quer – o dom das lágrimas é uma conquista dos que se lançam à vida com tudo o que têm.

«Muitos anos antes de Cristo havia na Grécia um poeta que dizia: ‘Tenho uma grande arte: eu firo duramente aqueles que me ferem’. Minha arte é ainda maior: eu amo aqueles que me amam». Isto escreveu Rubem Fonseca em A Grande Arte. Mais adiante, no mesmo romance, diz-se: «As palavras, meu carrancudo amigo, antigamente, davam tesão e faziam chorar, faziam revoluções, faziam as pessoas se matarem, mas agora fazem apenas as pessoas terem um ar estúpido, (…)».

Os enredos policiais de Rubem movem-se em torno das palavras que sobram ( medo, morte, ganância, cobardia) e das palavras que faltam (amor, que no léxico de Rubem estará sempre ligado ao sexo, por excesso ou por carência).

Quem tem o privilégio de amar os livros não seca por dentro: chora inconvenientemente.

As lágrimas limpam a visão. Ensinam a ver. No sal delas some-se tudo o que não presta, trazendo à tona as palavras que ardem e curam – o amor, primeira e última razão.

Lágrimas na Chuva é o título do romance agora publicado de Rosa Montero, uma ficção política que decorre no ano de 2109, um tempo em que os nacionalismos fatais foram substituídos pelos Estados Unidos da Terra mas os racismos e a ânsia de poder minam ainda a existência. E a clonagem evoluiu até à criação de replicantes mais ou menos sofisticados, munidos de memórias falsas.

Mas o que é uma memória verdadeira, se duas pessoas recordam os mesmos factos de forma distinta? Em cada replicante grita a brevidade da vida – porque vivem apenas dez anos. Mas os outros, os que vivem os nossos míseros setenta ou noventa anos, o que fazem das suas vidas? O deslumbramento da paixão partilhada, a dor do fracasso, a mágoa do desencontro, o riso dos amigos – e o tempo perdido em estratégias e vinganças, planos de poder e sonhos adiados.

«Todos esses momentos se perderão no tempo como lágrimas na chuva», escreve Rosa, citando o mítico filme Blade Runner, realizado já há 30 anos.

Ao receber o grande Prémio Literário do Casino da Póvoa e das Correntes d’Escritas, Rubem Fonseca declarou o seu amor orgulhoso pela Língua Portuguesa e recitou versos de Camões.

Pode e deve orgulhar-se: trocou uma vida de conforto pelas escarpas da escrita e da leitura. Pegou nas palavras que queimam e atiçou-lhes o fogo, consciente de que só a partir desse lugar obscuro se pode em verdade transformar o mundo. Criou um léxico seu e ofereceu-o ao mundo. «Não há sinónimos» – alertou. Desejo. Amor. Liberdade. Coragem. Entrega. Palavras à prova de bala, brilhantes como corpos cintilando no escuro.

Este festival realiza-se há 13 anos. Dele nasceram ideias, livros, encontros, e pelo menos dois casais felizes – um deles, composto por um escritor espanhol e uma escritora cubana que acabaram por escolher Portugal como a sua morada.

Nas escolas, assiste-se a uma ampliação entusiástica dos hábitos de leitura.

E ganha-se a medalha de cristal das lágrimas, sem a qual não somos mais do que piegas, gente que vive como se estivesse morta.

(crónica publicada no jornal Sol de 2 de Março de 2012)

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