sábado, 29 de março de 2014

Ogígia existe?


Arnold Böcklin: Odysseus and Calypso, 1883

A República de Malta é constituída por três ilhas: Malta, Gozo e Comino. Há quem defenda que Gozo é a ilha Ogígia da Odisseia. Em Gozo, muito perto da praia Ir-Ramla l-Ħamra (praia da areia vermelha), há uma gruta que dizem que é a gruta da ninfa Calipso (Calypso's Cave).
Há outras hipóteses para a localização de Ogígia: Pantelheria, Lampedusa ou a sua não existência material.
Em Ogígia, Calipso reteve Ulisses durante sete anos. Um excerto da Odisseia relativo à ilha:

"Mas quando chegou por fim à ilha longínqua,
trocou pela terra firme o mar cor de violeta,
para que chegasse à grande gruta, onde vivia
a ninfa de belas tranças. E encontrou-a lá dentro.
Ardia um grande fogo na lareira, e ao longe,
por toda a ilha, se sentia o perfume a lenha de cedro
e incenso, enquanto ardiam. Ela cantava com linda voz;
e com lançadeira dourada trabalhava ao seu tear.”

Em torno da gruta crescia um bosque frondoso
de álamos, choupos e ciprestes perfumados,
onde aves de longas asas faziam os seus ninhos:
corujas, falcões e tagarelas corvos marinhos,
aves que mergulham no mar em demanda de sustento.
E em redor da côncava gruta estendia-se uma vinha:
uma trepadeira no auge do seu viço, cheia de cachos.
Fluíam ali perto quatro nascentes de água límpida,
juntas umas das outras, correndo por toda a parte;
e floriam suaves pradarias de aipo e de violeta.
Até um imortal, que ali chegasse, se quedaria,
só para dar prazer ao seu espírito com tal visão.
E aí se quedou, maravilhado, o Matador de Argos.

Odisseia, Homero, Canto V, pág. 92/93 (Livros Cotovia)

A situação na Ucrânia


No dia 7 de fevereiro de 2010, a população ucraniana escolheu Viktor Yanukovitch, candidato reconhecidamente pró-russo.
Viktor Yanukovitch venceu as eleições presidenciais na Ucrânia, tendo ficado em segundo lugar Júlia Timochenko. Até essa data Júlia Timochenko era primeira-ministra. Dá-se uma inversão do rumo que a Ucrânia seguia de aproximação à União Europeia. 
Em novembro de 2013 a Ucrânia suspende as negociações para um acordo de associação com a União Europeia. Seguem-se três meses de violentas manifestações.
Em fevereiro de 2014 Yanukovitch é destituído por decisão do Parlamento. Mas o Parlamento tinha legitimidade para destituir o Presidente? A decisão foi legal ou tratou-se de um golpe de Estado? Esta questão tem sido omitida na informação que chega até nós. A informação que nos chega apresenta uma visão parcial da realidade e antigos fantasmas do tempo da “guerra fria” têm sido acenados. O que é certo é que a sitação é completamente distinta. Não existem duas super-potências mas sim uma única. Continua a existir a NATO mas deixou de existir o Pacto de Varsóvia. Assim, é completamente irrealista falar em “ameaça russa”. Há sim é que ter em conta a complexidade étnica e cultural da Ucrânia, que está longe de ser um país homogénio.
O russo é amplamente falado, em especial no leste e no sul do país. Segundo o censo de 2001, 67,5% da população declararam falar o ucraniano como língua materna, contra 29,6% que falam o russo como primeira língua. No sul e leste da Ucrânia a população russófona é claramente maioritária, pelo que é natural que não aceite o novo poder saído daquilo que tudo indica ter sido um golpe de Estado. O extremar de posições origina a rotura, o que já ocorreu na Crimeia. Só é possível preservar a unidade territorial da Ucrânia se for tida em conta a população russófona do país – quase um terço da população. No mapa apresentado é evidente a divisão do país. Só políticas e atitudes moderadas permitem a preservação da unidade do país. A radicalização de posições conduz à rotura e ao desmembramento da Ucrânia que está a acontecer.

sexta-feira, 21 de março de 2014

Com respeito às palavras


No rigor do latim, “indignado” é o que é tornado indigno. E eis, porém, que a palavra não se aceita a ela própria, empreende uma singular rebelião. Nega a humilhação que cai sobre ela. Vejam o quanto esta palavra é poderosa. Como deitou ao chão a sua origem. Como tomou nas mãos a sua vida
I
Não tenho competência para escrever sobre os eventos da realidade. Começa a falha pelo léxico: nem sei se o termo “evento” pode usar-se aqui. Não aprendi o bom vocabulário. E quanto à organização para o discurso, saber onde ele começa e como acaba, mais o que pelo meio se vai pondo, tão pouco faço a mais pequena ideia.
Eu, quando tenho de falar com alguém do género bancário ou fiscalista, aviso logo que sou das “Humanidades”, isto é, completamente ignorante. E peço caridade lexical, paciência: essas virtudes superiores. Nunca se fica muito esclarecido, mas trata-se de não incomodar. Um resto de amor-próprio determina que escapemos depressa do cenário. A humilhação chama pela maldade e eu resplandeço quando ocasionalmente alguém me diz uma palavra cara que posso decifrar rapidamente, emudecendo o interlocutor: “Sei o que significa, vem do grego”, disparo. E já não é uma conversa. É uma espécie mitigada de motim. O anedotário da revolução francesa regista que os motins não causam dano, são como uma pequena bebedeira. Não vale a pena perder tempo com motins. Não vale, aliás, a pena perder tempo. Estrebuchamos no vazio e alguém ri.
Parece, às vezes, que o cenário da ficção científica assentou no planeta actual: que criaturas mais ou menos humanóides nos conquistaram pelo interior e desapoderaram-nos de tudo, esperança, dignidade e alegria. Vimos tanto clamor nas praças gregas, cólera e fogo com nenhuma consequência. É como se entre os protestantes e o poder não houvesse trajecto, não houvesse natureza contínua. Duvido até que conseguissem procriar se a carne de uns e de outros se encontrasse. Respiram ares diferentes e não faz sentido algum que certa retórica da esquerda os desafie a que experimentem a pobreza, a que tentem viver com o salário que destinaram para os indefesos. Provavelmente viveriam bem porque não se alimentam como nós. Nem dormem como nós. Talvez nem morram. A verdade é que pouco pensamento nós conseguimos produzir sobre eles. A desumanidade é um mistério.
II
Vejo como anda gente a reclamar que se dê espaço à imaginação. É uma herança daquele Maio de 68 que a queria no poder e fez com isso uma bonita frase. Aliás, não houve muito muito mais que herdar. Mas enquanto os filósofos confiam nos benefícios do receituário, longe deles e do fumo dos Gauloises está à espera a serpente,latet anguis. Os Le Pen crescem sem filosofia. E a imaginação, que faz? Distrai. Melhor será dizer que nos engana. A alegoria cibernética que eu acima explorei trouxe um sorriso a este texto enquanto texto. E mais além não vai. Fornece uma dinâmica de jogo e entretém vagamente até cansar.
Sim, porque é de cansaço que se trata. De exaustão, no sentido de não termos nem uma gota que nos dessedente. Eu tenho o pensamento habituado à escrita metafórica e aqui estou a criar uma imagem enganosa. Se procurar um modo de dizer exacto, brutal, limpo, em que a palavra perca os seus ademanes de palácio, não acharei em “exaustão” o termo certo. Ninguém caminhou tanto que se sinta quase a morrer por desidratação. No “país de poetas”, caímos automaticamente numa coloração vocabular que muito raramente dá bons textos. De tão familiar, não a estranhamos. Até deixamos que trabalhe contra nós.
Por que aceitamos que se fale, por exemplo, nas “gorduras do Estado”? O Estado não tem metabolismo. Tem excesso de despesas, muitas delas em mordomias e em disparates.Um Estado não “emagrece”: corta nos gastos, e a escolha para os cortes tem critérios, e os critérios não se aplicam ao acaso. Aquilo que se chama ideologia, a moldura mental com que um comum destino se interpreta e planeia, decide a escolha. E escolhe-se cortar naquilo que é empecilho ao projecto, no que se quer extinguir ou, pelo menos, fazer partir para onde não se torne visível. Com a metáfora sobre o corpo obeso dá-se a volta ao assunto, transformando-o em algo humanizado e censurável. Fica fora do alcance da razão — nos labirintos do imaginário, naquilo que culturalmente assimilámos a ponto de esquecer — a simpatia pela causa. Dentro de nós, a ideia do descuido, da glutonice, da preguiça, enfim, do Sul, facilmente coabita com a ideia de punição e de dieta rigorosa. Tomar medidas para emagrecer é justo e bom. Se implica sacrifícios, são sacrifícios de ginásio, desses que conferem certa estética ao suor. Só um bulímico se recusa a entender e a estimar um regime que assegura saúde e elegância a quem o siga. Alcança longe, a manha da metáfora.
É necessário estarmos prevenidos contra os efeitos destas redacções. Há, no deslize para as figuras de compêndio, quase um tropismo, uma procura de consolo. Isso empobrece a agudeza do olhar. Sei que aquilo que eu disse muita vez — “Hoje o nosso inimigo não tem rosto”, para significar que é mais difícil reconhecê-lo, assinalá-lo e confrontá-lo, não é só uma frase retórica e inútil — partilha essa tendência viciante para a baixa literatura que nos dá a ilusão de intervir pela palavra. O que a expressão “sem rosto” cria é uma distância e, mais que uma distância, uma abstracção. Junta-se aos nossos medos ficcionais. Começámos com o Feiticeiro de Oz, vamos ao Orwell e a lição que retiramos é que, no fim, acaba tudo bem, os livros fecham-se e as crianças vão para a mesa. Bettelheim explicou que serventia têm estes entrechos. Um adulto já não beneficia com semelhante kit de aprendizagem. Corre o risco de hipnose. Vai pelo sonho. Estou convencida de que sonhar leva a que a musculatura se atrofie.
Temos que chegue de pequena literatura. Os governantes descobriram o filão e desataram a usar sem pejo os melhores truques da Academia. Metaforizam desalmadamente e é com muito sucesso que recorrem aos artifícios da prosopopeia, como novos Pessoas ou Camões. O que é o Bojador ao pé de um Estado pejado de gorduras, de mercados que são como velhos senhores que não tomaram a valeriana e atiram os criados escada abaixo nos maus humores da indigestão? Que mulher fabulosa é essa Europa a quem nós temos simplesmente de agradar sem compreender bem os seus caprichos? A Rainha de Copas da Alice, que tanto atormentou a minha infância porque gritava “Cortem-lhe a cabeça!” sem que se vislumbrasse uma razão, grita outra vez. Mudou apenas de idioma. Eles declaram: “Ela quer”, “ela ameaça”, “ela não anda nada satisfeita” e a cada um desses avisos nós levamos os dedos ao pescoço, com receio de que a cabeça já não esteja lá.
Quanto a enredos, tecem-nos com brilho, sobre modelos de novecentos. Por que tenho pensado ultimamente no Conde de Monte-Cristo quando leio os jornais? Porque vemos enredo semelhante, com o injustiçado que enriquece e acaba por ser dono do destino daqueles que o maltrataram. Edmond Dantès agora é angolano. Naturalmente, há um pedido de desculpas, uma genuflexão, talvez. The end?
Eles, os novéis cultores da ficção, vão-se referindo muito à “narrativa”. Por “narrativa” hão-de querer dizer o encadeamento temporal das acções. Mas vão mais longe ao conseguirem sugerir a malignidade da intriga, a vontade de drama que é aquilo que enche o texto de pathos e produz no leitor surtos de acidez moral. Conhecem bem o ofício: não se deixam manietar pelas questões da lógica, da verosimilhança ou da coerência. Mentem com toda a glória, porque não? Não é toda a grande obra uma mentira? É só preciso que quem mente minta bem. Minta na sua glória de poeta. Os governantes mentem com virtude.
E, no entanto, as pessoas não apenas clamam contra o prodigio criativo como até se declaram indignadas. Por causa da palavra “indignação” é que me pus a rabiscar o texto. Porque é uma palavra extraordinária. Deu a volta por dentro de si mesma para contrariar o seu significado. E tratou disso logo que nasceu, não houve aqui evolução semântica. No rigor do latim, que julgaríamos incontornável, vemos surgir uma palavra derivada pela prefixação do in negativo, que transforma um conceito no oposto. “Indignado” é o que é tornado indigno. E eis, porém, que a palavra não se aceita a ela própria, empreende uma singular rebelião. Nega a humilhação que cai sobre ela. O indignado, dizendo-se indignado, renega a sua condição, rebela-se. Vejam o quanto esta palavra é poderosa. Como deitou ao chão a sua origem. Como tomou nas mãos a sua vida.
Isto pode parecer prosa de exaltação, mas não passa de simples constatação linguística. Provavelmente precisamos disto. Enquanto os outros fazem literatura e a temática Dickens encontra no país uma oportunidade para se impor, tornemos nós ao simples, ao sensato, ao denso e intenso uso das palavras. Com o abuso do estilo, fomos deixando para trás a frescura das origens, a fisicalidade da palavra, ela que é parte do real e nele se inscreve. Sei que o caminho para a abstracção foi útil e foi bom porque nos fez aceder, por exemplo, aos conceitos. Mas, mutatis mutandis, assim como Hölderlin teve certo desígnio ao traduzir Antígona, também eu gostaria de repor a primeira energia da linguagem, recordando a nudez inicial. Falemos de “catarse” — que se aplica à gritaria das manifestações. Serve a catarse para energizar? Não serve. Uma catarse é má medida. Uma catarse era concretamente vómito de ressaca. O alívio de estômago a seguir a uma bebedeira. Era deitar para fora e ficar limpo. Transposta para a lição do teatro, assim durou, implicando sempre uma transformação. É isso o que se quer saindo à rua? Que a vivência nos lave do mal-estar? Falar não deve aliviar do mal. Pelo contrário, deve torná-lo inteligível e discutível. Torná-lo, a bem dizer, manipulável. Um material exterior e que, com esforço, consigamos dobrar. Nós precisamos tanto de catarses como de sonhos. Temos de levar outra intenção para as ruas.
O que é manifestar? É dar a ver. Dar a ver com as mãos. Não necessariamente mãos em festa — a etimologia é duvidosa. Provavelmente mãos conflituantes. Há com certeza uma finalidade para juntar num desfile a multidão, mas nós não somos já gente de ritos, não somos gente de re-ligação. Temos de inaugurar tudo novamente, a começar pelas frases de incentivo, pois as que ouvimos, de tão velhas, tão usadas, perderam o vigor. Estão transformadas em ladainhas de beatitude. Aliás, as mais das vezes não serviam como motores de mobilização, fracas de rima, rastejantes de sentido. Mas enquanto se caminhou a passo forte, enquanto, a velocidades várias, se manteve uma leitura histórica das coisas, uma certeza de alma potenciava aquele vocabulário esmaecido.
Se hoje as pessoas continuam a marchar é porque, à força de repetição, os sapatos estão enfeitiçados. Não é de dança, mas de espasmo, o movimento. O grito que invectiva já não faz estremecer o seu destinatário. O seu destinatário olha para “aquilo”, chama-lhe “aquilo”, e vai à sua vida. Mostra um grande talento para apoucar. Nós que talento revelamos? O da fé? O da brava teimosia? Repetimos os nossos argumentos… “até à náusea”: assim acaba a frase que herdámos da retórica latina. Não é possível refazer a língua? É, sim.
A nova poesia portuguesa já deitou as metáforas ao lixo. Está cheia de real e de um real sujeito a um olhar e a uma oficina que lhe conferem, numa mesma nota, estranheza e ressonância familiar. E há jovens cientistas muito atentos ao uso não utilitário da palavra, mais atentos, direi, do que muitos literatos. Eu tive o privilégio de falar, para uma sala de lotação superesgotada, sobre a pouca importância do enredo nos textos. Isso interessou-os extraordinariamente. Num mundo apoquentado por gravatas, eu vejo os meus amigos estudantes e doutorandos de Cultura Clássica, em não pequeno número, dispostos a cruzarem experiências e saberes como se tudo começasse agora e a Antiguidade nos tocasse. Se deles não vier o apetrecho que nos ensine a ver, e a ouvir, e a clamar com outro assomo de energia, se aplicarmos ao “hoje” o alfabeto que aplicámos ao “ontem”, nada lemos.
III
A nitidez que existia nas velhas ditaduras, os claramente vistos Bem e Mal, a ausência de dúvida nas causas, os perigos a que o corpo se arriscava, alimentavam plenamente a alma. Não era porque o inimigo tinha um rosto que a resistência se tornava articulada com a própria vida, como uma moral. Não tinham rosto os espiões da PIDE. Havia nomes, sim. Mas também temos nomes agora. A diferença é que o novo poder não ameaça directamente com prisão e com tortura. Por um reflexo quase biológico, a violência, o assassinato, o corte da estrutura vital cria mais vida. Era esse o princípio que levava uma revolução a triunfar.
O grande golpe é o que se dirige à alma. O meu sentido de “alma” é o que vem da anima latina, claro está, a instilação da vida que nos torna activos e pensantes. Qualquer torcionário aprende cedo que a alma não se tira com a faca mas com manobras de desorientação e de abatimento. O sopro anímico extingue-se depressa, bem mais depressa que o bater do coração, e sem sujar. “Desanimados”: eis a nossa condição. Bem mais difícil de remediar do que a de meros “oprimidos”, pela diferença que existe entre ter ânimo e não ter.
O ânimo requer o alerta dos sentidos. Não por caso, entre os soldados na batalha, alma era sinónimo de coragem. É de coragem que necessitamos, da coragem de ver e rejeitar. Não vamos pelo sonho. Assistimos, tempos atrás, a uma breve ardência, quando se encheram praças a Oriente — chamou-se a isso a Primavera Árabe — e o mundo pareceu fácil de abraçar. Víamos o real? Não, não o víamos. E, no entanto, ele move-se sem nós. Move-se sem parar. Quando acordamos, não temos senão cinza nos cabelos. Há um gesto possível? Há um gesto. Pelo menos, sacudi-la. Pelo menos, neutralizar a fábula, desmascarar os efabuladores. Ainda não conhecemos os seus rostos. Somente os rostos dos pequenos servos. Conhecemos, porém, os artifícios.
Por que usam a palavra “austeridade”? Porque há nela uma certa ressonância de coisa justa, de atitude respeitável. Alexandre Herculano foi austero. Sóbrio, frugal, um tanto seco na expressão, honesto, incorruptível — isso mesmo. A austeridade é um estádio a que se chega num percurso moral muito esforçado. É um modo de vida, uma atitude pela qual alguém opta, numa escolha inteiramente pessoal, quando recusa render-se ao luxuoso e ao supérfluo. Classificar alguém de “austero” significa que lhe atribuímos qualidades pouco usuais no cidadão vulgar. Ouvimos a palavra e logo o nosso dicionário subconsciente nos assinala que é para respeitar, acatar e temer. Se há uma “austeridade” que castiga é porque andámos na dissipação. Pressupõe-se que nós baixemos a cabeça sob o pecado que a palavra implica. Na verdade, não há “austeridade” aqui. Há alguém empurrado para a miséria. É um processo involuntário, imposto por uma força superior, neste sentido de que não pode desobedecer-se. E imposto, no sentido, também, da inocência. Estamos a pagar o quê, porquê? Em que momento é que prevaricámos? Foi a comprar mais um televisor, foi a escolhermos uma sala com lareira? Nós aprendemos, no devido tempo, que não podemos alegar ignorância da lei se a violámos, mas havia uma lei contra o conforto? Havia alguma lei que proibisse os filhos de viverem como tinham vivido os patrões dos seus pais? Devo dizer aqui que o consumismo me desperta uma viva repugnância, que admiro e sigo, porque quero, a vida “austera”. Mas, porque eu ando de transportes públicos, entenderei que a compra de um automóvel deve entregar o cidadão ao agiota? Estou a falar de pequeninas coisas, de minúsculas coisas que não chegam para lançar uma pessoa no inferno. O grande gasto, o gasto vil, onde se oculta?
Não, não nos pedem a “austeridade”. Eles exigem a pobreza e as suas consequências. Não, não fizemos mal. O que fizemos foi por fraqueza de desprevenidos ante a perversidade dos banqueiros. Não nos aliciavam com empréstimos? A bruxa má não estava a oferecer maçãs? Ficaremos agora deitados no caixão, narcolépticos, à espera de algum príncipe?
Vamos de história em história, adormentados.
Uma palavra envenenada estraga o mundo. Basta atentarmos em “democracia”, palavra vinda de tão longe, trabalhada, moldada, experimentada tanta vez. Parece ter sofrido uma anquilose, uma patologia da velhice que a transformou numa entidade rígida. E o conceito que lhe corresponde imobiliza, prende, como num propósito de teia. Diz-se: o eleitor votou em liberdade. E essa liberdade manietou-o. Mais não pode fazer do que esperar pelo próximo processo eleitoral. E censuramos os abstinentes que nos respondem que “não vale a pena” — quando os factos lhes dão toda a razão. Porque a democracia está disforme, ainda que insistamos em louvá-la.
Se olharmos sem a ilusão veremos quão irreconhecível se tornou. Veremos como finda o seu processo ali onde devia ter início. Melhor dizendo: finda o que, em rigor, é perene. A palavra “escrutínio” significa, para nós, simplesmente, a contagem dos votos. Mas escrutínio não é apenas isso: é vigilância. É observação continuada, é um exame de comportamentos. Por alguma razão os ingleses, experientes neste assunto, ainda aplicam a expressão under scrutiny aos governantes. O sustentáculo da democracia está na possibilidade e na probabilidade de cada cidadão vir a ser eleito e, uma vez eleito, prestar contas. Essa é a superioridade da República e a sua beleza. O voto é só um expediente técnico que o espaçamento temporal vicia.
Como se leva isso à prática não sei. Mas sei como se leva ao pensamento. E sei que o pensamento é o que faz levantar a cabeça. Estamos num tempo novo, rodeados por luz e escuridão para as quais não temos nem mapa nem farol. Temos modelos tão inspiradores como remotos. Certo é que a palavra é a obra do humano e a palavra não cessa de existir. Com palavras se fazem os fascismos, e Magnas Cartas e as Constituições. Cultivá-las, estudá-las, não nos salva talvez. Mas dignifica-nos. E se podemos aprender algo com o passado, antes de o perdermos completamente de vista, é que a dignidade se conquista e que a indignação a isso ajuda.
Hélia Correia in Ípsilon, 15 jan 2014

segunda-feira, 10 de março de 2014

Cursos de escrita criativa: uma perda de tempo


Hanif Kureishi, whose debut novel The Buddha of Suburbia won the Whitbread first novel prize, was speaking at the Independent Bath Literature festival on Sunday. He was made a professor at Kingston University last autumn, when he said it was " truly an exciting time to be a part of the creative writing department", but on Sunday Kureishi told the Bath audience that, when it came to his students, "it's probably 99.9 per cent who are not talented and the little bit that is left is talent".
"A lot of my students just can't tell a story. They can write sentences but they don't know how to make a story go from there all the way through to the end without people dying of boredom in between. It's a difficult thing to do and it's a great skill to have. Can you teach that? I don't think you can," said Kureishi, according to the Independent, which sponsors the festival.
"A lot of them [students] don't really understand," said Kureishi. "It's the story that really helps you. They worry about the writing and the prose and you think: 'Fuck the prose, no one's going to read your book for the writing, all they want to do is find out what happens in the story next.'" He works with his own students, said Kureishi, "for a long time". "They really start to perk up after about three years. And after about five years they really realise something about writing. It's a very slow thing.  People go on writing courses for a weekend and you think, 'A weekend?'"
He wouldn't, Kureishi said, according to the Independent, pay money to take an MA in creative writing himself. "No. I wouldn't do it like that. That would be madness. I would find one teacher who I thought would be really good for me," he told his audience. "It's not about the course. The whole thing with courses is that there are too many teachers on them, and most are going to teach you stuff that is a waste of time for you."
With a vast range of creative writing courses on offer in the UK - including from the Guardian - Kureishi is not the only author to feel the same way. Novelist and former creative writing teacher Lucy Ellmann, while disagreeing with Kureishi that style is unimportant, nevertheless described creative writing as "the biggest con-job in academia", and pointed to the poet August Kleinzahler's comment in the Guardian that "It's terrible to lie to young people. And that's what it's about."
"The whole system is set up to silence writers, and dupe students. It doesn't even provide a safe haven for writers, as Hanif made clear, because most universities go out of their way to ruin writers with admin, overwork, and other nonsense. There's lousy teaching too: I know of creative writing teachers who don't even read the students' work. This is criminal," said Ellmann. "But of course, the purpose of corporations - which is what universities now are - is to scupper originality and dissent.Universities have gone from being culture-preserving institutions to being culture-destroying institutions. And people queue up to pay these culture-destroying institutions £9000 a year to ensure that any idea of literature is destroyed before it can enter their heads."
If you want to write, said Ellmann, "what you should really be doing is reading as much good literature as you can get your hands on, for years and years, rather than wasting half your university life writing stuff you're not ready to write".
And once you've done that, "what you need and deserve is individual help, as Hanif says," she said. "I think it's a real pity that thousands of people are studying this subject - and being taught by unqualified tutors, some of whom have never published a novel. And I can't stand it when authors announce they have a degree in creative writing. So what? They're a dime a dozen."
But Jeanette Winterson, who teaches at Manchester University, disagreed with Kureishi. She told the Guardian: "My job is not to teach my MA students to write; my job is to explode language in their faces. To show them that writing is both bomb and bomb disposal – a necessary shattering of cliche and assumption, and a powerful defusing of the soul-destroying messages of modern life (that nothing matters, nothing changes, money is everything, etc). Writing is a state of being as well as an act of doing. My job is to alter their relationship with language. The rest is up to them."
Rachel Cusk and novelist Matt Haig, who is chairing the Jerwood Fiction Uncovered prize this year, have also defended the process in the past. Responding to Kureishi's remarks Haig said:
"Creative writing lessons can be very useful, just like music lessons can be useful. To say, as Hanif Kureishi did, that 99.9% of students are talentless is cruel and wrong. I believe that certain writers like to believe they arrived into the world with special, unteachable powers because it is good for the ego," said Haig. "Of course, it is always important to know your limitations. For instance, I could have 7,000 guitar lessons but I wouldn't be Hendrix, though I would be a lot better than I am now. Like most artforms writing is part instinct and part craft. The craft part is the part that can be taught, and that can make a crucial difference to lots of writers."
His own first novel was read by Winterson, said Haig, "and she gave me advice that still helps me today. She told me to change 'epiphanic moment' to 'moment of epiphany', for instance, which is advice of infinite wisdom".
"To say that creative writing courses are all useless is almost as silly as saying all editors are useless. Writers, of all levels, can benefit from other instructive voices," he said. "However, I do think some people will never be writers. Just like some people will never be architects or web designers. But good writing courses will help you work out if you are a writer or not."
A spokesperson for Kingston University told the Independent that Kureishi's course was "extremely demanding and valuable", and that the author, playwright and screenwriter "is employed for his thought-provoking, inspirational contribution which he provides through supportive masterclasses, tutorials and PhD supervisions. Students consistently praise him and benefit from his advice."
The Guardian

Hamlet censurado


Hamlet, Ato I, 1.ª Cena - Fala de Horácio”, depois dos cortes da censura. Tradução inédita de Sophia de Mello Breyner Andresen”, in O Tempo e o Modo, N.º 19 (set. 1964), p. 46-47

Parece hoje inacreditável. Em 1964, a censura impediu a publicação completa da "Fala de Horácio" da peça Hamlet, de Shakespeare. A censura cortou a última linha: “O fantasma avança – Pára-o! Fá-lo parar, Marcelo!”.


domingo, 9 de março de 2014

O cinismo

Diógenes — Jean-Léon Gérôme (1860)
Le Magazine Littéraire, no seu número de março de 2014, dá especial destaque à influência dos cínicos gregos na literatura. A palavra cínico tem origem no grego kynikós que significa "relativo ao cão"  (Dicionário da Academia das Ciências de Lisboa). Há duas explicações para esta designação, aceite pelo próprio Diógenes de Sínope. Uma que considera que aquela designação se deve ao facto de vários cínicos ensinarem numa escola chamada Cinosargo (em grego, kyon argos, isto é, cão ágil ou cão branco). Curioso que o cão de Ulisses se chamava Cinosargo. Outra explicação é que os cínicos tinham uma vida de cão. Segundo Michel Foucault (Le courage de la vérité. Le gouvernement de soi et des autres II. Cours au Collège de France, 1983/4, citação encontrada aqui), comentadores do século I explicaram esse nome assim: 
"Primeiro, a vida kunikos é uma vida de cão por ser sem pudor, sem vergonha, sem respeito humano. É uma vida que faz em público e à vista de todos o que apenas os cães e os animais ousam fazer, ao passo que os homens normalmente o escondem. [...] Segundo, a vida cínica é uma vida de cão porque, como a dos cães, ela é indiferente. Indiferente a tudo o que pode acontecer, ela não se prende a nada, se contenta com o que tem, ela conhece apenas as necessidades que pode satisfazer ime- diatamente. Terceiro, a vida dos cínicos é uma vida de cão [...] por que é de alguma forma uma vida que ladra [...], uma vida capaz de bater-se, de ladrar contra os inimigos, que sabe distinguir os bons dos maus, os verdadeiros dos falsos [...]. Enfim, quarto, a vida cínica é [...] uma vida de cão de guarda, uma vida que sabe dedicar-se para salvar os outros e proteger a vida dos donos."
No Mundo de Sofia, Jostein Gaarder escreve sobre os cínicos:
"Conta-se que Sócrates parou certo dia em frente de uma banca onde estavam expostas muitas mercadorias. Por fim, exclamou: "Vejam só de quantas coisas os Atenienses precisam para viver!". Com isto, queria obviamente dizer que ele não precisava dessas coisas.
A filosofia cínica, que foi fundada por Antístenes cerca do ano 400 a.C. em Atenas, parte desta atitude de Sócrates. Antístenes tinha sido discípulo de Sócrates.
Os “cínicos” defendiam que a verdadeira felicidade não dependia de coisas exteriores, como o luxo material, o poder político e uma boa saúde. A verdadeira felicidade significava não se tornar dependente dessas coisas casuais e efêmeras. Precisamente por não repousar sobre essas coisas, a felicidade podia ser alcançada por todos. E uma vez alcançada não se podia voltar a perder.
O cínico mais conhecido era Diógenes de Sínope, um discípulo de Antístenes. Conta-se que morava num tonel e que só possuía um manto, um bastão e um saco para o pão. (Não era fácil roubar-lhe a sua felicidade!). Certo dia, estava a tomar um banho de sol à frente do seu tonel quando Alexandre Magno o visitou. Alexandre apresentou-se ao sábio e disse-lhe que lhe daria o que ele desejasse. Diógenes pediu a Alexandre que não lhe tapasse o sol. Foi assim que Diógenes demonstrou que era mais rico e mais feliz do que o grande homem. Tinha tudo o que desejava. 
Segundo os cínicos, o homem não se deve preocupar com a sua saúde, com a dor e com a morte. Também não se devia atormentar com a dor dos outros. Hoje, os termos "cínico" e "cinismo" exprimem quase sempre a impassibilidade perante o sofrimento dos outros."