quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

“Vencereis…mas não convencereis!”: Unamuno e a razão contra a força

Unamuno, na saída da Universidade, com os falangistas cercando o filósofo antes de entrar no carro.

No livro "O Ano da Morte de Ricardo Reis", cuja ação se passa em 1936, José Saramago recorda Miguel de Unamuno e Millán Astray (pág. 370 a 376 da 15ª edição). Episódio marcante e revelador envolveu ambos e dele encontrei o relato no site do jornal "O Estado de S. Paulo" (Estadão):
"Don Miguel de Unamuno, filósofo espanhol, no fim da vida fez um discurso emblemático a favor da razão contra o uso da força.
Neste 7 de abril, dia do jornalista, não falarei de um jornalista em si, mas sobre um pensador. E sobre um governo que desprezava os pensadores e os livros. Isto é, em resumo, é sobre a liberdade de expressão versus o uso da força.
Os protagonistas: o filósofo e reitor de Salamanca, Miguel de Unamuno; o general Millán Astray, líder da Legião Estrangeira, braço-direito do generalíssimo Francisco Franco; uma multidão de militares e civis falangistas-franquistas.
O cenário: o recinto de cerimônias da Universidade de Salamanca, cidade que havia tornado-se capital provisória dos rebeldes.
O contexto: a guerra civil espanhola (1936-1939). Mais especificamente, seus primeiros meses, quando as tropas de Franco e seus aliados avançavam pela Espanha, tomando as principais cidades e realizando massacres de civis, aprisionando e torturando os intelectuais, impondo uma censura sem precedentes desde os tempos da Santa Inquisição.
O ano: 1936
O dia: 12 de Outubro, data na qual celebrava-se o “Dia da Raça” (mais tarde denominado de “Dia da Hispanidade”), uma das principais datas nacionais na Espanha.
No dia 18 de julho de 1936, o reitor e filósofo Miguel de Unamuno, que havia colaborado intensamente para a instauração da República em 1931, decidiu respaldar o golpe militar que imediatamente foi monopolizado pelo general Francisco Franco. No entanto, ao ver a repressão desatada que os rebeldes aplicavam contra a população civil e a instalação de um regime autoritário, Unamuno começa a perceber que o grupo que havia apoiado não era o que havia imaginado. Sua mesa em seu escritório na Universidade fica coberto de cartas de amigos e conhecidos que pedem que salve centenas de pessoas que estavam sendo detidas na cidade.
Seu amigo Prieto Carrasco, prefeito republicano de Salamanca, e José Andrés y Manso, deputado socialista, haviam sido assassinados. Na prisão, à espera do fuzilamento, estavam seus amigos pessoais Filiberto Villalobos, médico, e o jornalista José Sánchez Gómez. Outro amigo, o pastor anglicano e maçom Atilano Coco, estava ameaçado de morte. Dezenas de alunos seus na Universidade haviam sido levados à prisão.
O septuagenário escritor vai até o palácio episcopal de Salamanca, onde Franco estava hospedado, para pedir clemência para um grupo de pessoas que tentava salvar da morte. É inútil. Franco fuzila todos.
Arrependido de ter respaldado os rebeldes com seus prestígio internacional, Unamuno participa – sem previsão de discurso algum – da abertura solene do ano acadêmico no dia 12 de outubro de 1936 no salão de cerimônias da Universidade.
Na tribuna estavam sentados a mulher de Franco, Carmen Pólo, o bispo de Salamanca, Enrique Plá y Deniel, e o chefe do Departamento de Imprensa e Propaganda de Franco, o general José Millán Astray, fundador da Legião Estrangeira Espanhola, que havia perdido o braço esquerdo e o olho direito nos combates no Marrocos. E além deles, ali sentado estava Unamuno, nascido no país basco, uma das grandes figuras da “Geração de 98”, que haviam revitalizado a cultura da Espanha nas primeiras décadas depois da guerra hispano-americana, que havia mergulhado o país na depressão.
Toda a alta cúpula franquista estava presente. Menos Franco, que estava representado por um imenso retrato pendurado em uma das paredes, ao qual a multidão realizava a saudação fascista (nas quatro décadas seguintes a imagem de Franco estaria presente em todos os lugares públicos e seu nome seria usado para rebatizar ruas e avenidas).
Millán Astray começou os discursos afirmando que “o fascismo seria o cirurgião que extirparia a “falsa Espanha”, constituída pelos “bascos, catalães e comunistas. O fascismo é o remédio da Espanha, os exterminará, cortando na carne viva como um frio bisturi”.
Seu discurso foi interrompido por seus simpatizantes, que começaram a gritar o slogan da Legião: “Viva a morte!”.
Millán Astray, tal como o pavovliano cachorro, gritou três vezes seguidas “Espanha!”
Os simpatizantes ficaram em pé, estenderam seus braços direitos à moda fascista e gritaram em coro: “Uma, grande, livre!”.
O entourage rebelde: no centro da turma, o general Francisco Franco Bahamonde (o mais baixinho) e seu amigo e general Millán Astray.
Não estava previsto que Unamuno fosse discursar. Mas, o velho filósofo considerou que tudo o que estava acontecendo era demasiado.
“Serei breve. A verdade é mais verdade quando manifesta-se nua, livre de adornos e palavreados…Falou-se aqui de guerra internacional em defesa da civilização cristã; eu próprio o fiz outra vezes. Mas não, a nossa é apenas uma guerra incivil”, disse Unamuno.
“Me conhecem bem e sabem que não sou capaz de ficar em silêncio. Às vezes, ficar calado é o mesmo que mentir, pois o silêncio pode ser interpretado como aceitação”.
“Gostaria comentar o discurso, para chamá-lo de algum modo, do general Millán Astray, que se encontra aqui entre nós. Vencer não é convencer e é preciso convencer, principalmente, e não pode convencer o ódio que não deixa lugar para a compaixão. Vou ignorar a afronta pessoal da súbita onda de vitupérios que ouvi contra bascos e catalães. Eu mesmo, que dúvida cabe disso, nasci em Bilbao. O bispo, goste ou não, é catalão de Barcelona. Ele ensina a doutrina cristã que o sr (dirigindo-se a Millán Astray) não aprende. E eu, que sou basco, passei a vida ensinando a vocês o idioma espanhol, que o sr não conhece”.
Vestido de preto, com presença majestosa com sua barba branca, disse com voz firme, mas serena: “acabo de ouvir o necrófilo grito de ‘viva a morte!’, que para mim é como gritar ‘morte à vida’ ”.
Um close up na dupla: o cara da esquerda governaria a Espanha durante 4 décadas, mergulhando o país no atraso tecnológico e econômico, além de atrasar a vida cultural do país (e isolando o país durante longo tempo). O sujeito da direita seria o encarregado da propaganda oficial e imprensa durante certo tempo. Sem querer parecer preconceituoso contra as aparências físicas…mas se vocês derem de cara com um dos dois na rua, a partir das 19:00 hs, não sairiam correndo?
Na seqüência, indignado e enojado com os crimes, a censura e a perseguição cultural que os rebeldes estavam protagonizando, Unamuno diz:
“E eu, que passei toda a vida a criar paradoxos que provocaram a reprovação e a zanga daqueles que não os compreenderam, tenho que lhes dizer, com autoridade na matéria, que este ridículo paradoxo me parece repelente. Uma vez que foi proclamada em homenagem ao último orador, entendo que foi a ele dirigida, se bem que de uma forma excessiva e tortuosa, como testemunho de que ele próprio é um símbolo da morte. E outra coisa (Unamuno, nesse momento, começa a exaltar-se com as próprias palavras)…o general Millán-Astray é um inválido. Não é preciso que o diga em tom mais baixo. É um inválido de guerra. Também o foi Cervantes. Porém os extremos não servem como norma. Desgraçadamente, hoje em dia há demasiados inválidos. E depressa haverá mais se Deus não nos ajudar. Me dói o fato de pensar que o general Millán-Astray possa ditar normas de psicologia de massas. Um inválido que não tenha a grandeza espiritual de Cervantes, que era um homem, não um super-homem, viril e completo apesar das suas mutilações, um inválido, como disse, que não possua essa superioridade de espírito, costuma sentir-se aliviado vendo como aumenta o número de mutilados em seu redor. O general Millán-Astray gostaria de criar uma Espanha nova, criação sem dúvida negativa, à sua própria imagem. Por isso ele desejaria uma Espanha mutilada”.
Millán Astray – que detestava Unamuno – fica encolerizado e grita “Morte à inteligência!”. O público completa aos brados: “viva a morte!”. Os militares da Legião sacam suas armas dos coldres. Unamuno, aparentemente sozinho nesse recinto, não se intimida. Millán Astray continua gritando “morte à inteligência!” e de repente ficam sem voz, afônico.
Subitamente, após os gritos dos falangistas, um silêncio aparentemente interminável toma conta do recinto da velha universidade. Todos olham na direção de Unamuno.
Ele fica em pé. E concluiu sua derradeira lição magistral.
“Este é o templo da inteligência! E eu sou o seu supremo sacerdote! Vocês estão profanando o seu recinto sagrado. Sempre fui, apesar do que diz o provérbio, profeta em meu próprio país. Vencereis, mas não convencereis. Vencereis porque possuem a força bruta de sobra. Mas não convencereis, porque convencer significa persuadir. E para persuadir precisam de uma coisa que lhes falta – razão e direito na luta. E parece-me inútil pedir-lhes que pensem na Espanha”.
Unamuno só conseguiu sair vivo do recinto de cerimônias de Salamanca porque Carmen Polo Franco deu o braço a Unamuno e – depois de passar pela massa que apontava seus revólveres contra a cabeça do filósofo, no meio de vaias e gritos – o acompanhou até sua casa, para protegê-lo da fúria dos falangistas, que o queriam linchar. Carmen, mais tarde, foi recriminada por Franco, que durante horas reclamou de sua atitude e por não ter permitido que executassem o filósofo “traidor” após o discurso.
No dia 22 Franco o destitui do cargo de reitor.
Dias depois, recebe o escritor grego Nikos Kazantzakis, a quem diz: “um dia, em breve, me levantarei e começarei uma luta pela liberdade, eu sozinho. Não sou fascista nem bolchevique. Sou um solitário”.
No dia 31 de dezembro de 1936, enquanto as tropas de Franco avançavam pela Espanha, Unamuno falece."
Repare-se que comemoravam os fascistas o "Dia da Raça", hoje denominado "Dia da Hispanidade". Note-se que Cavaco Silva desenterrou recentemente a denominação de má memória "Dia da Raça".

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Jorge Listopad

Prefácio do último livro de Jorge Listopad:
"Não gosto de falar de mim, mas falo — não gosto de falar dos textos, mas sou-lhes permeável. Quando escrevo, é como se fosse o meu primeiro e o meu último livro. Bem sei que entre o primeiro e o último existe apenas um espaço, ora mais curto, ora mais comprido, isso depende da potên- cia eólica dos moinhos de vento de hoje. É verdade, quase tudo é vento: em cima o do céu, em baixo a narrativa.
o livro que o leitor tem na mão, Remington, divide-se em duas partes, ciente que a comunicação tem vários processos. a primeira parte chama-se Vale das borboletas mortas. ao escrevê- -la, por vezes sorri, moderei o meu amor e até me deixei apa- nhar pela melancolia eslava; quiçá repeti-me e, se assim foi, perdi tempo e os contos perderam o carácter de mistério que consiste numa proposta entre o real e a ficção e cuja síntese me atrai tremendamente. Quarenta e um contos sem parasitação teórica.
a segunda parte aproxima-se de uma outra realidade, diria alucinatória, traduzida por uma técnica de narrar. porém, mesmo assim, o rio da memória encharca os pés dos tex- tos. o nome desta série pertence a um enredo que procura Gibraltar, onde o território de facto não consta, ou, antes, não figura no mapa que conhecemos, na sua passagem entre o Mediterrâneo amado e o atlântico respeitado, isto é, entre o nosso Homero e um qualquer Neptuno metafísico.
entre o primeiro livro e este último — Remington — existem apenas coisas da vida e do seu oposto."
Dois contos lidos, aqui
Três contos, aqui
Crítica no Ipsilon, aqui
Sobre o livro, na TSF, aqui
Excertos da entrevista a Jorge Listopad, em 2003, aqui