sábado, 18 de janeiro de 2014

Um Adeus Português


UM ADEUS PORTUGUÊS
Nos teus olhos altamente perigosos

vigora ainda o mais rigoroso amor

a luz de ombros puros e a sombra

de uma angústia já purificada



Não tu não podias ficar presa comigo

à roda em que apodreço

apodrecemos

a esta pata ensanguentada que vacila

quase medita

e avança mugindo pelo túnel

de uma velha dor



Não podias ficar nesta cadeira

onde passo o dia burocrático

o dia-a-dia da miséria

que sobe aos olhos vem às mãos

aos sorrisos

ao amor mal soletrado

à estupidez ao desespero sem boca

ao medo perfilado

à alegria sonâmbula à vírgula maníaca

do modo funcionário de viver



Não podias ficar nesta cama comigo

em trânsito mortal até ao dia sórdido

canino

policial

até ao dia que não vem da promessa

puríssima da madrugada

mas da miséria de uma noite gerada

por um dia igual



Não podias ficar presa comigo

à pequena dor que cada um de nós

traz docemente pela mão

a esta pequena dor à portuguesa

tão mansa quase vegetal



Não tu não mereces esta cidade não mereces

esta roda de náusea em que giramos

até à idiotia

esta pequena morte

e o seu minucioso e porco ritual

esta nossa razão absurda de ser



Não tu és da cidade aventureira

da cidade onde o amor encontra as suas ruas

e o cemitério ardente

da sua morte

tu és da cidade onde vives por um fio

de puro acaso

onde morres ou vives não de asfixia

mas às mãos de uma aventura de um comércio puro

sem a moeda falsa do bem e do mal 
*
Nesta curva tão terna e lancinante

que vai ser que já é o teu desaparecimento

digo-te adeus
e
como um adolescente

tropeço de ternura

por ti.
Alexandre O’Neill, No Reino da Dinamarca, 1958

“Quando escrevi «Um Adeus Português», há quase quarenta anos, estava a sofrer pressões inacreditáveis, por parte de alguém da minha família, para não «ir atrás da francesa». A francesa, a minha querida e já falecida amiga Nora Mitrani, queria que eu fosse ter com ela a Paris, onde vivia. «Vens, ficas cá e depois se vê», era o que o seu otimismo me dizia por carta. Mas as coisas não se passaram assim. 
A pressão (ou, melhor, a perseguição) chegou ao ponto de ter sido metida uma cunha à polícia política para que o passaporte me fosse denegado, o que aconteceu, não sem que eu, primeiro, tivesse sido convocado para a própria sede dessa polícia e interrogado pelo subinspetor Seixas. Seixas usou comigo de uma linguagem descomedida. Perguntou-me que ia eu fazer a Paris. Respondi: Turismo.
Quis saber se eu conhecia a senhora N. M. Eu disse que sim. Então Seixas retorquiu: Se calhar V. quer ir porque essa gaja lhe meteu alguma coisa na cachola. Com a serenidade que me foi possível, fiz-lhe saber que se enganava, que N. M. não era uma gaja e que eu não tinha cachola. Pareceu surpreendido. Depois, irritado, mandou-me sair. E assim estive anos sem conseguir passaporte.
Claro que o poema não se gerou apenas desta situação, mas ela contribuiu poderosamente, com outros fatores circunstanciais bem conhecidos, para que o poema aparecesse. Era uma época em que tudo cheirava e sabia a ranço, em que o amor era vigiado e mal tolerado, em que um jovem não era senhor dos seus passos (errados ou certos, não interessa).
Semanas depois, «nascia» o poema e, com ele publicado, uma relativa notoriedade. É que o poema, ingénuo como é, tem realmente a força do nojo e do desespero combinados com um derrame/contenção sentimental que não mais igualei. Então, durante algum tempo, fiquei conhecido como o poeta de «Um Adeus Português».
A minha amiga, que não voltei a ver (quando a fui procurar em Paris já tinha morrido), ainda tomou conhecimento deste poema. Escreveu-me: «Li o teu Adeus. Fiquei atrozmente comovida.»
Claro que um poema não é feito de nojos, desesperos e derrames sentimentais, mas, no caso, a felicidade de expressão foi vivamente alimentada por uma raiva e um amor desmesurados, quer dizer, adolescentes. E o poema foi ficando e passando para as antologias.
Explico tudo isto porque outro dia me chegou às mãos um número da Europe dedicado à literatura de Portugal. E lá aparece, numa tradução bastante pobre, o tal «Adeus... ». Não é que, na nota proemial, em que me definem como sarcástico, desesperado e terno, dizem que o poema foi inspirado por Nora Mitrani! Eu acho que, por enquanto, isso é comigo. Também o João Botelho (o do excelente filme Conversa Acabada) me telefonou a pedir-me autorização para usar o título do poema para título de um novo filme seu. Dei-lha logo. E nem sequer lhe perguntei se o que ele vai fazer tem a ver com o poema ou não. Isso é lá com ele. Como, insisto, é só comigo que Nora Mitrani tenha sido ou não a inspiradora de «Um Adeus Português». Pelo menos antes da presente explicação.
Tempos."
Alexandre O’Neill, Jornal de Letras, Artes e Ideias, n.º 94, 1984

Retirado daqui

Sem comentários:

Enviar um comentário