terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

A irritação é como um veneno ardente


"Quando os outros nos levam a irritarmo-nos com eles - com a sua insolência, injustiça, falta de escrúpulos - então o que acontece é que exercem poder sobre nós, alastram, devorando-nos a alma, pois a irritação é como um veneno ardente, que destrói todos os sentimentos brandos, nobres e equilibrados, e nos rouba o sono. Acossados pela insónia, acendemos a luz e irritamo-nos com a irritação, que se instalou dentro de nós como um parasita que nos explora e esgota. Não só nos sentimos furiosos pelo dano em si, como também pelo facto dele se desenvolver autonomamente dentro de nós, pois enquanto nós nos sentamos à beira da cama, com as fontes a latejar, o causador distante mantém-se indiferente ao poder destrutivo da irritação, cuja vítima somos nós. No palco vazio da nossa fantasia, mergulhados na luz ardente de uma fúria muda, representamos, na mais completa solidão, um drama imaginário com figuras e palavras espectrais, que com uma raiva impotente acirramos contra não menos espectrais inimigos, enquanto as labaredas geladas nos devoram as entranhas. E quanto mais desesperados nos sentirmos por tudo não passar de um teatro de sombras - em vez de uma confrontação real, em que sempre haveria a possibilidade de atacar o outro para estabelecer um equilíbrio do sofrimento -, tanto mais selvagem se toma a dança das sombras tóxicas, que nos perseguem até às mais obscuras catacumbas dos nossos sonhos. (Hás-de pagá-las, pensamos rancorosos, e passamos noites e noites a forjar palavras que possam atear-se no outro ou deflagrar como uma bomba incendiária, de modo a que seja então nele que as chamas da indignação alastrem, enquanto nós, apaziguados pelo mal alheio, bebemos tranquilamente o café matinal.) 
O que é que poderia significar agir correctamente perante a irritação? Nós não queremos ser pessoas insensíveis, perfeitamente indiferentes a tudo com que nos deparamos, seres cujas avaliações se esgotam em juízos frios e abstractos, sem que nada os consiga perturbar, porque nada os toca verdadeiramente. É por isso que não podemos desejar honestamente desconhecer a experiência da irritação, substituindo-a por uma indiferença obstinada que em nada se distinguiria da insensibilidade. A irritação também nos ensina a ver quem somos. É por isso que o que eu quero saber é o seguinte: em que é que poderia consistir educarmo-nos na irritação, desenvolver uma cultura da irritação que nos permitisse aproveitarmos o seu momento de conhecimento, sem sucumbirmos ao seu veneno? Podemos ter a certeza de que no leito de morte, e como parte do derradeiro balanço - uma parte tão amarga como cianeto - iremos constatar que desperdiçámos demasiada energia e tempo a curtir a irritação, obcecados em vingarmo-nos dos outros naquele solitário teatro de sombras que apenas nós, que impotentes o encenámos, conhecemos. O que é que podemos então fazer para melhorar esse balanço? Por que é que os nossos pais, professores e outros educadores nunca mencionaram isso? Por que é que nunca se chega a verbalizar um pouco dessa significativa dimensão? Por que é que nesse território não nos foi dada uma bússola que nos pudesse ajudar a evitar tamanho desgaste da alma em inúteis e autodestrutivas irritações?"
Amadeu Prado in "O Ourives das Palavras", ou melhor,
Pascal Mercier in "Comboio Noturno para Lisboa"

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