"Naquela cena, ocorrida anos atrás, indicaram-me a
cadeira ao lado de uma senhora de idade que cobria os olhos com grandes óculos
escuros. Era amável, elegante, falava um francês primoroso e, apesar dos
grandes esforços para dissimulá-lo, em tudo aquilo que dizia e opinava
transparecia sua vasta cultura. Foi somente na metade do encontro que reparei,
pela grande precaução dela no manejo dos óculos, que era cega ou, na melhor das
hipóteses, tinha uma visão limitada. Depois de nos despedirmos, averiguei que
Jacqueline de Romilly era uma grande helenista, catedrática de grego clássico
na École Normale e em Sorbonne, primeira mulher a ser eleita membro do Colégio
da França e uma das poucas representantes do gênero feminino na Academia
Francesa.
O primeiro livro de autoria dela que li, Pourquoi la
Grèce?, me deslumbrou tanto quanto sua pessoa. Por mais que aquilo que ela diga
e conte no livro tenha ocorrido há 25 séculos, sua atualidade é tão
extraordinária que a leitura da obra deveria ser obrigatória hoje.
O livro passa em revista o milagroso século 5 antes da
nossa era, no qual a história, a filosofia, a tragédia, a política, a retórica,
a medicina e a escultura alcançam na Grécia seu apogeu, assentando as bases
daquilo que, com o tempo, passaríamos a chamar de cultura ocidental.
Homero e Hesíodo são muito anteriores ao século 5 a.C.
e há muitos artistas, pensadores e autores de comédias posteriores a esse marco
temporal. O ensaio não hesita em retroceder ou avançar para incluí-los no
legado grego, ainda que a maior parte daquilo que é chamado de "visita
guiada através dos textos" se concentre nesse pequeno período de cem anos
no qual o reduzido espaço do mundo helênico vive uma espécie de eclosão
frenética, enlouquecida, de criatividade em todos os domínios do espírito, com
ideias, modelos estéticos, padrões intelectuais, invenções e descobrimentos,
graças aos quais a civilização do logos se distanciaria decisivamente de todas
as demais culturas do passado e de sua época e, sem ter tal intenção nem tal
consciência, transformaria para sempre a história do mundo.
Desenvolvimento. Jacqueline de Romilly mostra que na
Grécia nasceram, ou ganharam uma realidade e um dinamismo nunca antes observado
na vida social de povo nenhum, os fatores determinantes do progresso humano,
como a democracia, a liberdade, o direito, a razão e a arte emancipados da
religião, as ideias de igualdade, de soberania individual, de cidadania, e uma
maneira absolutamente nova de relacionamento entre o homem e o além, e os
deuses, bem como uma ideia de beleza e fealdade, de bondade e maldade, de
felicidade e infortúnio que, apesar dos inevitáveis matizes e adaptações que
lhes foram impostos pela história, seguem vigentes.
Ficamos maravilhados ao ver que um povo tão pequeno e
tão pouco coeso politicamente, cheio de numerosas cidades e colônias
distribuídas pela Europa e a Ásia Menor, que conservavam entre si uma imensa
margem de autonomia, um povo tão instintivamente reticente em formar um
império, em praticar o imperialismo e em submeter-se à prepotência de um tirano
tenha sido capaz de deixar na história da humanidade uma marca tão profunda.
Isso não foi um acidente nem obra do acaso. Houve razões para esse
desenvolvimento e o livro de Jacqueline as faz desfilar diante de nossos olhos.
Além de uma maneira de filosofar, explica ela, os diálogos socráticos e
platônicos ensinaram aos seres humanos que conversar, falar em grupo, é uma
maneira mais civilizada e ética de conviver do que dar ordens e obedecê-las,
uma forma de comunicação que reconhece ou estabelece desde o início uma igualdade
elementar. Assim foi surgindo a liberdade, domando o lado animal do ser humano
e permitindo o nascimento de sua verdadeira humanidade.
Em Pourquoi la Grèce?, essa demonstração não aparece
como um discurso abstrato, e sim por meio de comentários e citações literárias,
porque, como sua autora não se cansa de repetir, tudo aquilo que constitui uma
cultura clássica está essencialmente representado nas suas obras literárias, e
a verdadeira crítica é aquela que examina a poesia, a narrativa, o teatro, os ensaios
que uma sociedade produz na busca das verdades recônditas que alimentam sua
imaginação e impregnam as aventuras e os personagens aos quais seus artistas
deram vida para aplacar a sede do absoluto, de viver outras vidas, de seus
povos.
É verdade que a Grécia de nossos dias é muito
diferente. Nos 25 séculos transcorridos desde então seu povo vivenciou mais
infortúnios e catástrofes do que a maioria dos demais: guerras externas e
internas, ocupações, tiranias e segregações que várias vezes ameaçaram desintegrá-la.
Li no International Herald Tribune uma chocante
descrição do estado da economia do país, dos grotescos privilégios desfrutados
durante todos esses anos pelos seus armadores, banqueiros e empresários mais
prósperos, enquanto o povo grego segue empobrecendo.
Diante desse panorama, o surpreendente não deveria ser
o fato de muitos gregos terem votado em nazistas e extremistas de esquerda nas
últimas eleições, e sim que ainda haja um número tão grande de gregos que creem
na democracia, e também que as pesquisas de opinião para a próxima votação
indiquem que os partidos de centro-esquerda, centro e centro-direita, que
defendem a opção europeia, possam obter uma maioria e formar o novo governo.
Torço para que assim seja, porque, simplesmente, a
Grécia não pode deixar de formar uma parte integral da Europa sem que esta se
converta numa caricatura grotesca de si mesma, condenada ao mais retumbante
fracasso.
A Europa nasceu ali, no pé da Acrópole, 25 séculos
atrás, e tudo que ela tem de melhor, aquilo que ela mais aprecia e admira em si
mesma, assim como as instituições democráticas, a liberdade e os direitos
humanos têm sua distante raiz nesse pequeno rincão do velho continente, às
margens do Egeu, onde a luz do sol é mais potente e o mar é mais azul.
A Grécia é o símbolo da Europa e os símbolos não podem
desaparecer sem que aquilo que eles encarnam desmorone e se desfaça nessa
confusão bárbara de irracionalidade e violência da qual a civilização grega nos
tirou."
Crónica de Mario Vargas Llosa publicada no jornal "El País" em 3 de junho de 2012 e traduzida para o jornal "Estado de S. Paulo" por Augusto Calil
Sem comentários:
Enviar um comentário