domingo, 2 de fevereiro de 2014

Pura delícia sem caminho

Eugénio de Andrade, por Bottelho

"Claro que deve ensinar-se a ler poesia. E quem a ensina pode começar por prevenir que não se comem silabas aos versos, porque são altamente venenosas. Um poema, como Paul Valery escreveu (Cahiers, II, Pléiade, pág. 1065), é uma longa hesitação entre som e sentido. Conta e Canta, dizia outro poeta, António Machado. Portanto, a sua leitura deve fazer-se em voz alta, porque todas aquelas palavras aguardam uma voz para tomarem forma e figura. Voz que terá em conta o que é inerente ao próprio poema: tom, ritmo, acenos, pausas e até dissonâncias. Depois, sem a menor ênfase, como quem fala de amigo, quem lê deve deixar-se levar por essa música, "pura delícia sem caminho"."

(Revista Relâmpago. A poesia no ensino. 2002, p.11-14)

"pura delícia sem caminho" é uma citação de Mallarmé:

Ô rêveuse, pour que je plonge
Au pur délice sans chemin,
Sache, par un subtil mensonge,
Garder mon aile dans ta main.

Une fraîcheur de crépuscule
Te vient à chaque battement
Dont le coup prisonnier recule
L'horizon délicatement.

Vertige ! voici que frissonne
L'espace comme un grand baiser
Qui, fou de naître pour personne,
Ne peut jaillir ni s'apaiser.

Sens-tu le paradis farouche
Ainsi qu'un rire enseveli
Se couler du coin de ta bouche
Au fond de l'unanime pli !

Le sceptre des rivages roses
Stagnants sur les soirs d'or, ce l'est,
Ce blanc vol fermé que tu poses
Contre le feu d'un bracelet.



Ó sonhadora, para que eu mergulhe,
Na pura delícia sem caminho,
Sabe, por uma subtil mentira,
Conservar minha asa em tua mão.

Um fervor de crepúsculo,
Chega a ti a cada batida,
Cujo golpe prisioneiro recua
O horizonte delicadamente.

Vertigem! Eis que estremece,
O espaço como um grande beijo
que louco por nascer para ninguém
Não pode jorrar nem sossegar.

Sentes o paraíso bravio
Como um riso enterrado
Escorrer do canto de tua boca
No fundo da unânime prega!

O cetro das margens róseas
Estagnantes sobre os entardeceres de ouro, o é,
Este branco vôo fechado que tu pousas,
Contra o fogo do bracelete.

Sem comentários:

Enviar um comentário