terça-feira, 24 de julho de 2012

Assim falou Zaratustra, Richard Strauss



A partitura de Assim falou Zaratustra viu a luz entre fevereiro e agosto de 1896, inspirada na novela filosófica homónima da autoria de Friedrich Nietzsche (sobrepondo-se à doutrina cristã da exaltação dos humildes, submissos ao poder de um Deus criador, o filósofo germânico concebe, em Also sprach Zarathustra, o mito do profeta sobre-humano, cujos ensinamentos morais, desligados das noções absolutas de bem e mal, visam a profunda transformação da Humanidade). A partitura de Strauss reflete, de modo muito livre, os principais traços deste universo místico, através de um efetivo instrumental avassalador, bem ao gosto da era pós-romântica, o qual engloba quatro flautas, três oboés, corne inglês, quatro clarinetes, quatro fagotes, seis trompas, quatro trompetes, três trombones, duas tubas, percussão (incluindo glockenspiel), duas harpas, órgão e cordas.
A introdução, tornada célebre, à escala global, pela banda sonora do filme do realizador Stanley Kubrick, no filme 2001: Odisseia no Espaço (1968), ilustra o fenómeno grandioso do despertar da natureza, berço intemporal no seio do qual o espírito humano projeta as suas aspirações mais profundas. Sucedem-se depois as preleções de Zaratustra, um conjunto de oito secções interligadas, cada uma das quais principiada com um verso de Nietzsche. A primeira secção, Von den Hinterweltlern (“Das ideias religiosas”), expõe o apelo poderoso das crenças religiosas, nas quais o Homem procura resposta para as grandes questões existenciais que o preocupam. Na segunda, Von der großen Sehnsucht (“Da aspiração suprema”), o tema inicial da natureza reaparece, ao longe, enquanto que a melodia do Credo gregoriano, provinda da secção anterior, parece reiterar a auctoritas canónica sobre quaisquer visões alternativas do mundo e das coisas. O peso das imposições doutrinais provoca um sentimento de revolta na terceira secção, Von den Freuden und Leidenschaften (“Das alegrias e das paixões”). Motivos ascendentes e descendentes, nos violinos, simbolizam aqui a ligação do Homem ao mundo das paixões terrenas, do que resulta uma experiência evolutiva que o conduz desde o fascínio impulsivo, ao apaziguamento e, derradeiramente, ao desgosto. Na quarta secção, Das Grablied (“O canto dos túmulos”), o Homem volta o seu pensamento para o fim inevitável dos prazeres terrenos que experimentara anteriormente. Uma nova interrogação emerge na quinta secção, Von der Wissenschaft (“Da ciência”), protagonizada pelo timbre melancólico do clarinete, após o que reaparecem os motivos da natureza e do espírito humano. Porém, o conhecimento gerado pela ciência não produz explicações definitivas e convincentes para as grandes questões do universo. Sucede-se a sexta secção, Der Genesende (“O convalescente”), na qual a alma humana se liberta do mal e da ignorância, dando origem a um novo ser: Zaratustra. A densidade contrapontística da textura acentua-se, revelando as qualidades superlativas de Strauss como orquestrador. Em Das Tanzlied (“O canto da dança”), o violino solo introduz um interlúdio evocador das danças vienenses, cujo esplendor inicial se vai atenuando, até desaparecer por completo. A oitava e última secção, Nachtlied (“Canto da noite”) constitui a cena de fundo para a consagração definitiva de Zaratustra nas esferas da eternidade, pelo que a atmosfera geral é de exaltação e comemoração das vitórias alcançadas sobre os preconceitos e os medos. Das brumas escuras da noite emerge, enfim, a luz revivificadora, nas cordas, conducente ao patamar desejado, em notas prolongadas, emolduradas pelo timbre sereno dos sopros de madeira.
(da brochura Gulbenkian Música, temporada 2011-2012)

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