A partitura de Assim falou Zaratustra viu
a luz entre fevereiro e agosto de 1896, inspirada na novela filosófica homónima
da autoria de Friedrich Nietzsche (sobrepondo-se à doutrina cristã da exaltação
dos humildes, submissos ao poder de um Deus criador, o filósofo germânico
concebe, em Also sprach Zarathustra, o mito do profeta sobre-humano, cujos
ensinamentos morais, desligados das noções absolutas de bem e mal, visam a
profunda transformação da Humanidade). A partitura de Strauss reflete, de modo
muito livre, os principais traços deste universo místico, através de um efetivo
instrumental avassalador, bem ao gosto da era pós-romântica, o qual engloba
quatro flautas, três oboés, corne inglês, quatro clarinetes, quatro fagotes,
seis trompas, quatro trompetes, três trombones, duas tubas, percussão (incluindo
glockenspiel), duas harpas, órgão e cordas.
A introdução, tornada célebre, à escala
global, pela banda sonora do filme do realizador Stanley Kubrick, no filme
2001: Odisseia no Espaço (1968), ilustra o fenómeno grandioso do despertar da
natureza, berço intemporal no seio do qual o espírito humano projeta as suas
aspirações mais profundas. Sucedem-se depois as preleções de Zaratustra, um
conjunto de oito secções interligadas, cada uma das quais principiada com um
verso de Nietzsche. A primeira secção, Von den Hinterweltlern (“Das ideias
religiosas”), expõe o apelo poderoso das crenças religiosas, nas quais o Homem
procura resposta para as grandes questões existenciais que o preocupam. Na
segunda, Von der großen Sehnsucht (“Da aspiração suprema”), o tema inicial da
natureza reaparece, ao longe, enquanto que a melodia do Credo gregoriano,
provinda da secção anterior, parece reiterar a auctoritas canónica sobre
quaisquer visões alternativas do mundo e das coisas. O peso das imposições
doutrinais provoca um sentimento de revolta na terceira secção, Von den Freuden
und Leidenschaften (“Das alegrias e das paixões”). Motivos ascendentes e
descendentes, nos violinos, simbolizam aqui a ligação do Homem ao mundo das
paixões terrenas, do que resulta uma experiência evolutiva que o conduz desde o
fascínio impulsivo, ao apaziguamento e, derradeiramente, ao desgosto. Na quarta
secção, Das Grablied (“O canto dos túmulos”), o Homem volta o seu pensamento
para o fim inevitável dos prazeres terrenos que experimentara anteriormente.
Uma nova interrogação emerge na quinta secção, Von der Wissenschaft (“Da
ciência”), protagonizada pelo timbre melancólico do clarinete, após o que
reaparecem os motivos da natureza e do espírito humano. Porém, o conhecimento
gerado pela ciência não produz explicações definitivas e convincentes para as
grandes questões do universo. Sucede-se a sexta secção, Der Genesende (“O
convalescente”), na qual a alma humana se liberta do mal e da ignorância, dando
origem a um novo ser: Zaratustra. A densidade contrapontística da textura
acentua-se, revelando as qualidades superlativas de Strauss como orquestrador.
Em Das Tanzlied (“O canto da dança”), o violino solo introduz um interlúdio
evocador das danças vienenses, cujo esplendor inicial se vai atenuando, até desaparecer
por completo. A oitava e última secção, Nachtlied (“Canto da noite”) constitui
a cena de fundo para a consagração definitiva de Zaratustra nas esferas da
eternidade, pelo que a atmosfera geral é de exaltação e comemoração das
vitórias alcançadas sobre os preconceitos e os medos. Das brumas escuras da
noite emerge, enfim, a luz revivificadora, nas cordas, conducente ao patamar
desejado, em notas prolongadas, emolduradas pelo timbre sereno dos sopros de
madeira.
(da brochura Gulbenkian Música, temporada 2011-2012)
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