terça-feira, 3 de abril de 2012

Todos vamos morrer, por Inês Pedrosa

A economia não é a origem e o fim de todas as coisas – mas a consequência de decisões humanas que não se regem pelo deve e pelo haver, porque as pessoas não são caixas registadoras, por mais que se queira reduzi-las a isso.

Na passada semana tive notícia de várias mortes de portugueses, ainda jovens, com ataques de coração. A atmosfera social e política de um país é um factor de saúde ou doença – e pode ser mortal. O discurso da crise e da catástrofe passou já todos os limites do decoro – e as medidas de sufoco da classe média, que têm vindo em crescendo, provocando falências em catadupa de pequenas empresas e um sentimento geral de desalento ou mesmo pânico quanto ao futuro, estão a estrangular o país, e a matar gente.

Fazem falta intelectuais como Antonio Tabucchi, também desaparecido esta semana, capazes de denunciar os caminhos do desastre e apontar outras vias.

Numa extraordinária entrevista ao jornal Público, conduzida por Adelino Gomes, dizia Tabucchi, em 2006: «As pessoas que estão no poder, sobretudo, devem pensar que nunca vão morrer. É por essa razão que são tão estúpidas. A modernidade elidiu a ideia da morte. (…) Deveria ensinar-se aos miúdos, nas escolas, da maneira mais natural, que temos de morrer. A ideia de sermos mortais ajuda muito a viver. Mas a nossa sociedade escondeu totalmente a ideia da morte. Em compensação, porém, estamos cheios de cadáveres. É só abrir a televisão. Como pode funcionar bem uma sociedade em que há muitos cadáveres mas não há a ideia da morte?» .

Sim, antes de aprenderem mais matemática e mais português, os meninos necessitam de ser alertados para a brevidade da vida e a importância das escolhas que diariamente nela fazemos (mesmo – ou sobretudo – quando fugimos às escolhas, que é o grande problema moral contemporâneo).

A vida e a obra de Tabucchi, escritor italiano tornado português por amor, são a prova eloquente de que a economia decorre da filosofia, e não o contrário.

Muito jovem, leu na Sorbonne traduções francesas de poemas de Fernando Pessoa e decidiu conhecer Portugal e aprender a língua portuguesa, para poder ler este poeta no original. Casou-se com uma portuguesa e tornou-se, além de um dos mais importantes e reconhecidos escritores europeus, um excelentíssimo tradutor e divulgador da obra de Pessoa.

Escreveu uma novela directamente em português – Requiem –, homenagem à cultura portuguesa, a Lisboa e a Fernando Pessoa. Mas já nesse livro ( de 1991) se lê: «Este país está à venda(…) não sabe que os estrangeiros compram tudo?».

Trago comigo continuamente uma frase sua: «A infelicidade é uma forma de medo». Tabucchi analisou, na sua ficção, a ditadura portuguesa, explicando como o medo leva à infâmia, à denúncia e à traição. Além disso, manteve toda a vida uma intervenção crítica em jornais italianos, franceses e portugueses, tomando posições públicas claras e corajosas em defesa da liberdade de expressão.

Em 2009 foi processado pelo presidente do Senado italiano, Renato Schifani, por defender um jornalista que escrevera que os perfis de Schifani ocultavam as suas relações com pessoas condenadas por ligações à Mafia.

Com ou sem défice, todos vamos morrer um dia destes. Repetimos quotidianamente, a propósito de tudo e de nada: «Temos tempo», com uma arrogância ignara e cândida. Ou morremos de susto, cada vez mais, com medo dos novos papões da economia, sem rosto nem ideologia aparente.

Temos de aprender a respirar fundo e dizer não ao discurso da saída única, do sacrifício infinito dos mesmos e da protecção descarada dos sempre protegidos. Temos de honrar a vida e perder o medo aos mandaretes do tempo.

(crónica publicada no jornal Sol de 30 de março de 2012)

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