Por Vasco
Antonio Tabucchi apaixonou-se pela língua portuguesa.
Teremos, nós portugueses, a capacidade para a amar assim? Ou melhor, teremos a coragem para a amar assim? Digo coragem porque o ambiente, entre nós, é hostil. Seremos nós merecedores da língua que temos?
Moderador (M): Olá, Antonio Tabucchi. É reconhecidamente não apenas um escritor que utiliza com frequência a língua portuguesa e também a língua italiana, a sua língua de origem já que nasceu italiano, é também um estudioso da língua portuguesa e conhece-a com o mesmo grau de profundidade que conhece a sua própria língua de origem, o italiano. Mas antes de mais, eu quero perguntar como é que foi dar ao português como é que sinta-se pela língua portuguesa.
António Tabucchi (T): Foi por acaso, em 1964, quando era estudante de filosofia na Sorbonne de Paris. E um dia, indo apanhar o comboio na Gare de Lyon, parei por acaso em frente dum bouquiniste…
M: Um alfarrabista?
T: Um alfarrabista, sim, nas bancas em Paris, dos livros usados. Comprei um livrinho, se calhar por duas razoes: uma razão era porque tinha um título muito estranho em francês, para mim, sendo um poema, a tradução de um poema: chamava-se Bureau de Tabac, a tabacaria, o que era muito estranho. O autor, para mim, era um perfeito desconhecido, acho que para toda a Europa naquela altura, chamava-se Fernando Pessoa, e a segunda razão pela qual o comprei era que custava muito pouco.
M: Uma pechincha. [rir]
T: Sim, tinha pouquíssimo dinheiro no bolso. Li aquilo no comboio.
M: Leu em francês, porque era uma tradução, não é?
T: Claro, eu não sabia o que era o português, a língua portuguesa e pensei: “Ah! Que bonito seria aprender esta língua deste grande poeta”, porque a grandeza daquele poema era perceptível e vi que era realmente uma grande personalidade. E descobri que havia um ensino de português: “Ah! Língua e Literatura Portuguesa. Vou ouvir uma aula.” Abri a porta e para já estava lá uma mulher muito bonita, muito elegante, com uma voz magnífica e estava a ler um poema muito antigo que dizia: “Ondas do mar de Vigo, onde está o meu amigo? Se sabeis onde está o meu amigo, aí deus que volte cedo.” E pronto, eu fiquei encantado a ouvir este poema e o acaso acaba e eu reconheci naquele momento que havia uma circunstância especial que não podia deixar escapar: era a Luciana Stegagno Picchio…
M: Essa especialista pessoana!
T: Esta grande lusitanista, esta grande filóloga, que estava a explicar aos estudantes os cancioneiros galego-portugueses.
M: Como percebeu a língua portuguesa quando mergulhou nela pela primeira vez?
T: O que me tocou imediatamente foram os diminutivos que têm uma musicalidade especial.
M: Por exemplo, um abracinho, é isso?
T: “Ah! Meu amorzinho, se fores embora, leva-me na tua alminha.” È uma mensagem afectuosa, que tem obviamente uma musicalidade diferente do que uma outra língua.
M: O que é que a língua portuguesa. Qual é o perfil que traça, o que é que põe na imagem, que sentimentos e que traços é que desenha quando pensa na língua portuguesa?
T: Eu acho que isso seria como uma rapariga jovem e elegante que faz um gesto bonito quase dançando. Por exemplo: “Olha, desculpa-la mas eu não fiz isto!” A minha imitação é má…
M: O gesto gracioso, é isso?
T: A minha imitação é má mas neste tipo de sonoridade, que nós emitimos para dizer esta frase, eu vejo uma jovem graciosa e bonita a passear.
M: [rir] E o italiano? Consegue fazer essa avaliação, sendo a sua língua nativa?
T: Sim.
M: Então, que imagem é que constrói a partir do som do italiano?
T: Eu acho que são duas línguas muito femininas. Que têm uma graça que só se pode atribuir a uma dançarina.
M: Mas de duas dançarinas diferentes?
T: Obviamente.
M: Então qual é a diferença da dançarina italiana?
T: Eu acho que aquela dançarina portuguesa está mais vestida. A italiana está um bocadinho mais lasciva se calhar.
M: Mais sedutora?
T: Às vezes uma senhora mais vestida pode ser mais sedutora do que uma senhora menos vestida.
M: E esse vestido tem a ver com os sons mais fechados do e em vez do á e do é das vogais abertas da Itália?
T: Exactamente, quer dizer na sonoridade intensa, da língua italiana se calhar há uma sensualidade maior do que na língua portuguesa. A língua portuguesa é como se fosse mais púdica ao mesmo tempo. Por exemplo não reconheceria esta característica ao alemão ou a algumas línguas nórdicas.
M: Seriam masculinas, é isso?
T: Sim, aplicam-se mais para as ordens, para o militar.
M: No seu caso escreveu já tanto em português como em italiano. Como é que se sente mais a vontade a escrever?
T: Não sei, sabe, uma vez quando estava a procura, diria inutilmente, das razões pelas quais escrevia um livro, um romance em português como o Requiem por exemplo e tentei traduzir aquilo que tinha escrito para o italiano. Não consegui. Foi uma luta comigo próprio. Zanguei comigo próprio, a tradução ficou uma coisa bastante modesta, até miserável, mal feita. Traduzir se a si próprio é muito difícil. Então pediu a um amigo meu que me traduzisse para o italiano.
M: [rir] Que grande ironia.
T: Pode parecer paradoxal mas não é tão paradoxal como isto.
M: Temos estado a falar de duas línguas o português e o italiano. Quando toda a gente sente e testemunha que há uma língua, que está a ocupar cada vez mais terreno e que é uma espécie de uma língua franca que é o inglês. Como é que vê o papel do inglês na sociedade contemporânea, portanto que já sai muito para lá da fronteira dos países anglófonos? Portanto já percorre transversalmente…
T: Acho normal e muito bem, quer dizer, é uma língua de comunicação e temos que ter uma língua de comunicação. Se nós decidimos: agora falarmos inglês suponhamos porque o João não fala italiano e eu não falo português, tem que haver um código comum, é uma coisa técnica digamos assim.
M: Eu vou um pouco mais longe nesta minha impertinência porque já há muitas palavras em inglês, que ocupam o nosso quotidiano, que invadem a nossa privacidade e que dizemos mesmo quando usamos a nossa língua a falar com um português já se ouve também o inglês. Já existem expressões em inglês que vêm mais rapidamente a mente, mesmo numa comunicação entre duas pessoas que usam a mesma língua. Ou isto para si não constitui nenhum sinal de preocupação?
T: Na Itália, no meu pais, a invasão do inglês é muito mais violenta, entre aspas, do que acontece em Portugal. Mas isto não pertence propriamente à força do inglês, quanto ao desejo dos jornalistas, sobretudo eles, e portanto dos média de mostrar…
M: Portanto é mundano, não é isso?
T: E mundano, é snobistico e é um bocadinho estúpido, as vezes torna-se ridículo e normalmente são os jornalistas mais medíocres que, para exibir a sua falta de cultura, exibem palavras ingleses. Lembro me de uma vez de um speaker, portanto um jornalista na televisão,
M: Um pivot! Também se podia dizer à francesa…
T: Sim, um pivot. Ele estava a fazer a ironia porque ele dizia de si: “sou o speaker da televisão” e o tal speaker passaram-lhe uma coisa a ultima da hora, estava a ler o telejornal, e o speaker olhou para aquilo e disse: “o conselho dos ministros está adiado saine dai.” Leu o “sine die”…
M: Em inglês!
T: Viu o sine die em latim e pensou: “caramba isto é inglês de certeza” Saine dai, pronto!
M: Ora, temos também dentro do português alguns dilemas porque a forma como se comunica através de sms, portanto a língua escrita, quando vamos consultar os fóruns de discussão na Internet, está cheia de erros de português. Seriam todos chumbados, digamos assim. Portanto o cidadão português em geral fala mal o português, não fala um português correcto. E a minha pergunta é se sente que as línguas estão ameaçadas por essa cultura moderna, por essa cultura da utilização que comete muitos erros.
T: Não, eu acho que aquele é biológico. Quer dizer, não existe uma coisa numa cloche de vidro.
M: De regras intocáveis.
T: Exactamente! Quer dizer, a língua é uma língua que vai ter algumas doenças, que vai apanhar frio, vai ter uma pequena pneumonia, depois vai ter uma fase de não sei o que, depois vai ficar melhor no verão…
M: Então e o risco de dispersão de as pessoas falarem de tal modo sem uma regra unificadora, que acabem por se dispersar e, depois passado muito tempo, já nem falem a mesma língua.
T: Não é isto, são os variantes. Eu acho muito impositivo, acho uma espécie de camisa de força, tentar unificar as variantes linguísticas naturais.
M: Podemos imaginar que é contra um acordo ortográfico nessa situação.
T: Obviamente!
M: Portanto prefere que haja diversidade na ortografia.
T: Em geral tudo aquilo que tende ao amolgar e a unificar, não atira as minhas simpatias. Minha posição é uma posição existencial. Mas eu posso dizer-lhe que tudo o que tende a nivelar, eu não gosto. Eu gosto de diversificar, quanto mais melhor.
M: Não queria deixar de passar nesta entrevista por um desafio de o convidar a dizer algumas das palavras de que gosta particularmente, tanto em português como em italiano. Palavras favoritas. Palavras daquelas que tem gosto naquele que significam.
T: Tem gosto porque sabe as vezes há palavras que são uma condição de viver, como se fossem…
M: Conceitos…
T: É, conceitos… e são… por exemplo se você me dissesse o que é que o António Tabuchi está a fazer agora, eu podia responder com uma palavra portuguesa, em italiano não, porque em italiano não existe: “estou a engonhar”, o que é uma maravilha porque no engonhamento metindo que existe o engonhamento…
M: Engonhação… [rir]
T: Ou a engonhação… [rir]
M: Aliás, por acaso também existe um português que é no engonhanço que é também uma forma bem prática.
T: É uma condição espiritual muito especial. Não é só física, quer dizer engonhar quer dizer muita coisa. Portanto não vale a pena dizer. Mas há só uma palavra para dizer.
M: And what about italian? E se for italiano? Et en italien?
T: Olhe para ficar, digamos assim, no circuito semântico da palavra engonhar, há um sintagma italiano que foi adoptado no mundo inteiro, que é la dolce vita. O sentido semântico é semelhante, é mais ou menos. Dolce vita não se puó… pode traduzir.
M: [rir] Non si puó tradu… como é que se diz traduzir em italiano?
T: [rir] Tradurre.
M: Tradurre. Grazie António Tabuchi per questa intervista.
T: Prego. Stato un piaccere, foi um prazer.
M: Muito obrigado!
T: Muito obrigado eu!
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