No passado dia 20 de dezembro de 2012, a revista Visão publicou o artigo de opinião, da autoria do filósofo José Gil, intitulado "O roubo do presente" que se transcreve de seguida.
"Nunca uma situação se desenhou assim para o povo
português: não ter futuro, não ter perspetivas de vida social, cultural, económica,
e não ter passado porque nem as competências nem a experiência adquiridas
contam já para construir uma vida. Se perdemos o tempo da formação e o da
esperança foi porque fomos desapossados do nosso presente. Temos apenas, em nós
e diante de nós, um buraco negro.
O «empobrecimento» significa não ter aonde construir
um fio de vida, porque se nos tirou o solo do presente que sustenta a existência.
O passado de nada serve e o futuro entupiu.
O poder destrói o presente individual e coletivo de
duas maneiras: sobrecarregando o sujeito de trabalho, de tarefas inadiáveis,
preenchendo totalmente o tempo diário com obrigações laborais; ou retirando-lhe
todo o trabalho, a capacidade de iniciativa, a possibilidade de investir,
empreender, criar. Esmagando-o com horários de trabalho sobre-humanos ou
reduzindo a zero o seu trabalho.
O Governo utiliza as duas maneiras com a sua política
de austeridade obsessiva: por exemplo, mata os professores com horas
suplementares, imperativos burocráticos excessivos e incessantes: stresse,
depressões, patologias border-/ine enchem os gabinetes dos psiquiatras
que os acolhem. É o massacre dos professores. Em exemplo contrário, com
os aumentos de impostos, do desemprego, das falências, a política do Governo
rouba o presente de trabalho (e de vida) aos portugueses (sobretudo jovens).
O presente não é uma dimensão abstrata do tempo, mas o
que permite a consistência do movimento no fluir da vida. O que permite o
encontro e a intensificação das forças vivas do passado e do futuro - para que
possam irradiar no presente em múltiplas direções. Tiraram-nos os meios desse
encontro, desapossaram-nos do que torna possível a afirmação da nossa presença
no presente do espaço público.
Atualmente, as pessoas escondem-se,
exilam-se, desaparecem enquanto seres sociais. O empobrecimento sistemático da
sociedade está a produzir uma estranha atomização da população: não é já o «cada
um por si», porque nada existe no horizonte do «por si». A sociabilidade
esboroa-se aceleradamente, as famílias dispersam-se, fecham-se em si, e para o
português o «outro» deixou de povoar os seus sonhos - porque a textura de que são
feitos os sonhos está a esfarrapar-se. Não há tempo (real e mental) para o
convivio. A solidariedade efetiva não chega para retecer o laço social perdido.
O Governo não só está a desmantelar o Estado social, como está a destruir a
sociedade civil.
Um fenómeno, propriamente terrível, está a
formar-se: enquanto o buraco negro do presente engole vidas e se quebram os laços
que nos ligam às coisas e aos seres, estes continuam lá, os prédios, os carros,
as instituições, a sociedade. Apenas as correntes de vida que a eles nos uniam
se romperam. Não pertenço já a esse mundo que permanece, mas sem uma parte de
mim. O português foi expulso do seu próprio espaço continuando, paradoxalmente,
a ocupá-lo. Como um zombie: deixei de ter substância, vida, estou no limite das
minhas forças - em vias de me transformar num ser espetral. Sou dois: o que
cumpre as ordens automaticamente e o que busca ainda uma réstia de vida para os
seus, para os filhos, para si.
Sem presente, os portugueses estão
a tornar-se os fantasmas de si mesmos, à procura de reaver a pura vida biológica
ameaçada, de que se ausentou toda a dimensão espiritual. É
a maior humilhação, a fantomatização em massa do povo português. Este Governo
transforma-nos em espantalhos, humilha-nos, paralisa-nos, desapropria-nos
do nosso poder de ação. É este
que devemos, antes de tudo, recuperar, se queremos conquistar a nossa potência
própria e o nosso país."
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