"E foi
como se o meu berro embatesse de monte em monte desorientado louco, foi como
se. Devia haver, submersas petrificadas, vozes de outrora de quantos homens um
dia em esperança em loucura pela infinidade dos milénios acordai! gritai!
afirmai a vossa força contra a surdez obtusa do universo. Fico trémulo à
janela, o queixo, sinto-o, tremente no absurdo da minha cólera. Tenho de ir
fechar as janelas, tenho de ir abrir as lojas, tenho de. Escuto ainda o
silêncio do mundo, escuto a voz que não vem, a cabeça ligeiramente inclinada ao
grande espaço vazio. Ao fundo do vale, pequenos campos de verdura, ao longe no
translúcido da distância, são as pegadas do homem, pequenos indícios brancos de
aldeias. Uma voz que se erguesse, uma voz ouvida e que se calou - estou só. Ah,
o elo de uma voz que nos defenda contra a agressão das coisas. São coisas mudas
enquanto a nossa voz fala mais alto, depois são elas que falam. Fantásticas
lôbregas. Como olhares trocados na sombra. Um espírito vive nestes móveis, nos
desvãos das escadas, nos esconderijos do sótão, das lojas - tenho de as ir
abrir, tenho de. Construir o futuro sem futuro para construir. Inventar um rumo
contra um muro - se tu cantasses, voz anónima da terra. Vem-me de novo o apelo
à garganta, tenho medo de mim. Desta coisa que está em mim, viva alucinante.
Esta presença que tenho de esquecer para que eu viva tudo à superfície. À minha
volta o universo, dentro, na sala, o bater do relógio. E um bater lento, como a
cadência do destino. É um bater compassado como os passos da morte - e onde
estarão as chaves?"
Vergílio Ferreira (livro Para Sempre)
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