domingo, 3 de fevereiro de 2013

Vergílio Ferreira


"E foi como se o meu berro embatesse de monte em monte desorientado louco, foi como se. Devia haver, submersas petrificadas, vozes de outrora de quantos homens um dia em esperança em loucura pela infinidade dos milénios acordai! gritai! afirmai a vossa força contra a surdez obtusa do universo. Fico trémulo à janela, o queixo, sinto-o, tremente no absurdo da minha cólera. Tenho de ir fechar as janelas, tenho de ir abrir as lojas, tenho de. Escuto ainda o silêncio do mundo, escuto a voz que não vem, a cabeça ligeiramente inclinada ao grande espaço vazio. Ao fundo do vale, pequenos campos de verdura, ao longe no translúcido da distância, são as pegadas do homem, pequenos indícios brancos de aldeias. Uma voz que se erguesse, uma voz ouvida e que se calou - estou só. Ah, o elo de uma voz que nos defenda contra a agressão das coisas. São coisas mudas enquanto a nossa voz fala mais alto, depois são elas que falam. Fantásticas lôbregas. Como olhares trocados na sombra. Um espírito vive nestes móveis, nos desvãos das escadas, nos esconderijos do sótão, das lojas - tenho de as ir abrir, tenho de. Construir o futuro sem futuro para construir. Inventar um rumo contra um muro - se tu cantasses, voz anónima da terra. Vem-me de novo o apelo à garganta, tenho medo de mim. Desta coisa que está em mim, viva alucinante. Esta presença que tenho de esquecer para que eu viva tudo à superfície. À minha volta o universo, dentro, na sala, o bater do relógio. E um bater lento, como a cadência do destino. É um bater compassado como os passos da morte - e onde estarão as chaves?"
Vergílio Ferreira (livro Para Sempre)

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