sábado, 9 de fevereiro de 2013

A Origem do Mundo tem face?


A vulva seminal de Gustave Courbet em A Origem do Mundo pode associar-se pela primeira vez a uma cara prazenteira? Como uma peça de um puzzle, a revista Paris Match publica esta semana a história do perito francês que diz ter identificado a modelo de Courbet numa outra pintura, adquirida por um coleccionador num antiquário. Mas outros peritos desconfiam: a história da “descoberta” do novo quadro parece ser demasiado boa para ser verdade e tecnicamente há muito de “duvidoso” na tentativa de emparelhamento das duas pinturas.
Retrato de uma vulva hirsuta, aberta a reacções e interrogações, A Origem do Mundo do mestre francês já motivou apreensões de livros que a tinham na capa (em 2009, em Braga) e andou por colecções privadas grande parte do século XX. É, portanto, uma das pinturas mais reconhecíveis e mais dadas à polémica, mas menos expostas ao público da arte. E, no entanto, não é um rosto, como o de Mona Lisa, que a torna facilmente identificável. Agora, o autor do catalogue raisonné da obra de Courbet, Jean-Jacques Fernier, garante na revista semanal francesa Paris-Match que esta é mesmo uma peça em falta num puzzle cuja existência se desconhecia.
O especialista na obra do pintor francês (1819-1877) explica à Paris-Match que em Janeiro de 2010 um colecionador que apenas quer ser conhecido como “John” comprou a tela de 33X41 centímetros num antiquário de Paris por 1400 euros. A pintura retrata uma mulher com uma expressão de deleite e entrega e “John” tê-la-á entregue a Fernier, que por seu turno a passou a um laboratório especializado.
O perito admite não ter acreditado inicialmente na possibilidade de aquela pintura de uma mulher retratada apenas do pescoço para cima – A Origem do Mundo representa uma mulher dos ombros até aos joelhos – pudesse ser a cabeça daquele corpo da famosa pintura de Courbet. Mas, agora, Fernier não só acredita que é a mesma mulher, como também a identifica: será Joanna Hiffernan, a modelo e amante irlandesa do pintor James Whistler. O pintor ter-lhe-á omitido o rosto para proteger a identidade da modelo, teoriza Fernier.
O Museu d'Orsay, em Paris, que tem A Origem do Mundo na sua colecção desde o início da década de 1990, quando a sua última proprietária particular, Sylvia Bataille (mulher de Georges Bataille e de Jacques Lacan), morreu e a pintura foi entregue ao Estado francês, recusou comentar o caso. Disse, ainda assim à AFP, que os seus conservadores têm “o dever de reserva, tratando-se de obras nas mãos de particulares”.
Um mistério sem pistas
Fernier diz encontrar semelhanças no tom da obra, entre outros detalhes técnicos, que são desmontados por outros especialistas. O jornal especializado La Tribune de l’Art chama à capa da Paris-Match uma “falsa cacha” e lamenta que “o perito, respeitado especialista na obra de Courbet, possa dar prova de uma tal ligeireza” ao confirmar a análise científica do laboratório.  
Hubert Duchemin, outro grande conhecedor de pintura, não hesita, em declarações à AFP: “Os dois quadros não vêm do mesmo pincel.” Esta sexta-feira, o diário Le Monde publica um texto do crítico de arte e escritor Philippe Dagen em que, além da história quase romanesca do coleccionador que descobre um tesouro por uma pechincha num antiquário parisiense empoeirado – “bela história, ainda que assaz previsível” –, questiona a técnica e a própria ideia do “corte”.
Por que é que “nenhum dos contemporâneos que viu a obra – sobretudo [o escritor e fotógrafo] Maxime du Camp – não disse uma palavra sobre tal operação? E por que é que Khalil-Bey [diplomata turco que foi dono de A Origem do Mundo] teria aceitado ficar com um bocado e não com a obra inteira?”, pergunta.
A mais famosa obra de Courbet, que Gérard Lefort, jornalista do Libération, comparou há alguns anos à sua equivalente de Leonardo da Vinci - é "a Mona Lisa do sorriso vertical" –, foi uma encomenda do milionário turco-egípcio Khalil-Bey, que a expunha na casa de banho, dada a temática e o realismo da pintura. “Não era possível vender um quadro tão erótico naquela altura [final do século XIX], era impensável”, explicou Fernier à Reuters. “Quando Khalil-Bey o comprou, Courbet tirou-lhe a cabeça”, disse o perito à agência de notícias britânica na véspera da publicação das dúvidas de Dagen nas páginas do jornal Le Monde.  
Na quinta-feira, quando a revista anunciou na capa a sua “descoberta”, o Le Figaro desconfiou da veracidade da teoria de Fernier e da ideia de que existiriam outras partes da obra. Seguiu-se o conservador do Museu Courbet, em Ornans, cidade onde o pintor nasceu, que frisou à AFP que “A Origem do Mundo sempre foi descrita pelos críticos da época como uma mulher sem cabeça nem pernas”. E acrescentou que Hifferman foi retratada pelo pintor inúmeras vezes. “Era ruiva e acho que [esses retratos] se parecem pouco com a cara da morena no quadro da Paris-Match.
Tecnicamente, Dagen reitera as suas reservas: “A proximidade estilística [entre as obras ] é duvidosa. Nem a luz, nem o toque, nem a textura da pele, nem o cromatismo são homogéneos. Supondo que, se esta face [retratada] é de Courbet, datará do começo da sua carreira.”
(do site do jornal Público)

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