A vulva seminal de Gustave Courbet em A Origem do
Mundo pode associar-se pela primeira vez a uma cara prazenteira? Como uma
peça de um puzzle, a revista Paris Match publica esta semana a
história do perito francês que diz ter identificado a modelo de Courbet numa
outra pintura, adquirida por um coleccionador num antiquário. Mas outros
peritos desconfiam: a história da “descoberta” do novo quadro parece ser
demasiado boa para ser verdade e tecnicamente há muito de “duvidoso” na
tentativa de emparelhamento das duas pinturas.
Retrato de uma vulva hirsuta, aberta a reacções e
interrogações, A Origem do Mundo do mestre francês já motivou apreensões
de livros que a tinham na capa (em 2009, em Braga) e andou por colecções
privadas grande parte do século XX. É, portanto, uma das pinturas mais
reconhecíveis e mais dadas à polémica, mas menos expostas ao público da arte.
E, no entanto, não é um rosto, como o de Mona Lisa, que a torna
facilmente identificável. Agora, o autor do catalogue raisonné da
obra de Courbet, Jean-Jacques Fernier, garante na revista semanal francesa Paris-Match
que esta é mesmo uma peça em falta num puzzle cuja existência se
desconhecia.
O especialista na obra do pintor francês (1819-1877)
explica à Paris-Match que em Janeiro de 2010 um colecionador que apenas
quer ser conhecido como “John” comprou a tela de 33X41 centímetros num
antiquário de Paris por 1400 euros. A pintura retrata uma mulher com uma
expressão de deleite e entrega e “John” tê-la-á entregue a Fernier, que por seu
turno a passou a um laboratório especializado.
O perito admite não ter acreditado inicialmente na
possibilidade de aquela pintura de uma mulher retratada apenas do pescoço para
cima – A Origem do Mundo representa uma mulher dos ombros até aos
joelhos – pudesse ser a cabeça daquele corpo da famosa pintura de Courbet. Mas,
agora, Fernier não só acredita que é a mesma mulher, como também a
identifica: será Joanna Hiffernan, a modelo e amante irlandesa do pintor James
Whistler. O pintor ter-lhe-á omitido o rosto para proteger a identidade da
modelo, teoriza Fernier.
O Museu d'Orsay, em Paris, que tem A Origem do
Mundo na sua colecção desde o início da década de 1990, quando a sua
última proprietária particular, Sylvia Bataille (mulher de Georges Bataille e
de Jacques Lacan), morreu e a pintura foi entregue ao Estado francês, recusou
comentar o caso. Disse, ainda assim à AFP, que os seus conservadores têm
“o dever de reserva, tratando-se de obras nas mãos de particulares”.
Um mistério sem pistas
Fernier diz encontrar semelhanças no tom da obra,
entre outros detalhes técnicos, que são desmontados por outros especialistas. O
jornal especializado La Tribune de l’Art chama à capa da Paris-Match
uma “falsa cacha” e lamenta que “o perito, respeitado especialista na obra de
Courbet, possa dar prova de uma tal ligeireza” ao confirmar a análise
científica do laboratório.
Hubert Duchemin, outro grande conhecedor de pintura,
não hesita, em declarações à AFP: “Os dois quadros não vêm do mesmo pincel.”
Esta sexta-feira, o diário Le Monde publica um texto do crítico de
arte e escritor Philippe Dagen em que, além da história quase romanesca do
coleccionador que descobre um tesouro por uma pechincha num antiquário
parisiense empoeirado – “bela história, ainda que assaz previsível” –,
questiona a técnica e a própria ideia do “corte”.
Por que é que “nenhum dos contemporâneos que viu a
obra – sobretudo [o escritor e fotógrafo] Maxime du Camp – não disse uma
palavra sobre tal operação? E por que é que Khalil-Bey [diplomata turco que foi
dono de A Origem do Mundo] teria aceitado ficar com um bocado e não com
a obra inteira?”, pergunta.
A mais famosa obra de Courbet, que Gérard Lefort,
jornalista do Libération, comparou há alguns anos à sua equivalente de
Leonardo da Vinci - é "a Mona Lisa do sorriso vertical" –, foi
uma encomenda do milionário turco-egípcio Khalil-Bey, que a expunha na casa de
banho, dada a temática e o realismo da pintura. “Não era possível vender um
quadro tão erótico naquela altura [final do século XIX], era impensável”,
explicou Fernier à Reuters. “Quando Khalil-Bey o comprou, Courbet tirou-lhe a
cabeça”, disse o perito à agência de notícias britânica na véspera da
publicação das dúvidas de Dagen nas páginas do jornal Le Monde.
Na quinta-feira, quando a revista anunciou na capa a
sua “descoberta”, o Le Figaro desconfiou da veracidade da teoria de
Fernier e da ideia de que existiriam outras partes da obra. Seguiu-se o
conservador do Museu Courbet, em Ornans, cidade onde o pintor nasceu, que
frisou à AFP que “A Origem do Mundo sempre foi descrita pelos críticos
da época como uma mulher sem cabeça nem pernas”. E acrescentou que Hifferman
foi retratada pelo pintor inúmeras vezes. “Era ruiva e acho que [esses
retratos] se parecem pouco com a cara da morena no quadro da Paris-Match.”
Tecnicamente, Dagen reitera as suas reservas: “A
proximidade estilística [entre as obras ] é duvidosa. Nem a luz, nem o toque,
nem a textura da pele, nem o cromatismo são homogéneos. Supondo que, se esta
face [retratada] é de Courbet, datará do começo da sua carreira.”
(do site do jornal Público)
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