segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

O primeiro dia

Quando finalmente se decidiu a sair da janela, já dele não havia nem o rasto. O barulho da porta a fechar-se e o som dos seus passos pela escada a baixo estavam ainda dentro dos seus ouvidos. Quando ela era pequena, gostava às vezes de bater ao de leve com a ponta do garfo no copo, e ouvir aquele som fininho que parecia não acabar nunca. Então a mãe ralhava, porque o copo era de cristal e podia partir-se com aquelas patetices. Patetice era agora ela recordar-se dessas coisas, tão a despropósito, onde já vão os copos de cristal, meu Deus!, só porque o silêncio misturado com o barulho da porta a fechar-se parecia também não acabar nunca, fininho, fininho, a en- terrar-se no coração. Olhou para o relógio. Como preencher o vazio daquela manhã diferente, subitamente imensa? Pegou no telefone, a vontade de contar a toda a gente, de telefonar para toda a parte.
A amiga não se admirou sequer da hora matinal, parecia esperar até o telefonema. Perguntou apenas:
— Então?
— Lá foi — disse ela. — Lá foi. Sem uma palavra, sem se voltar na escada, sem um aceno.
— E tu à espera de uma cena estou mesmo a ver. Muitos choros, muitas lágrimas, sei lá.
— É estúpido, mas acho que sim, que estava à espera disso. Agora é tudo tão vazio. E o pior é que ele está em toda a parte: o seu cheiro, as suas camisolas, tudo. Às vezes até me parece que o ouço chamar por mim. Aqui estou feita parva, no meio da casa, sem saber o que fazer do meu tempo, da minha vida.— Aguentas, como nós todas aguentamos. Com o Ricardo foi a mesma coisa. Saiu de manhã como se fosse a coisa mais natural do mundo, e esta casa também ficou enorme. Ficam sempre enormes as casas quando eles saem.
E acrescentou: — O primeiro dia é que custa mais. Depois habituamo-nos. Combinaram um vago almoço para um daqueles dias vazios, e
acabaram por desligar. Se ao menos ela tivesse um emprego, um lu- gar onde estar a horas certas logo pela manhã, tudo seria diferente, as horas teriam decerto menos minutos, os minutos menos segundos. Assim, era um inferno: os olhos pregados naquela porta, naquela janela.
Ainda não eram quatro horas quando ouviu o toque da buzina. Largou tudo, era ele, tinha de ser ele! Correu à janela e viu-o, corado e feliz, a sair da carrinha, a pasta nova carregada às costas, a gritar- -lhe da rua:
— Mãe! Mãe! Já sei escrever o meu nome!
(Alice Vieira, do livro de crónicas "Bica Escaldada")

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