quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Um pouco de ternura e nada mais


"No domingo, 27 de Janeiro, às 5 da tarde, fui internado de urgência no Santa Maria. Respirava com extrema dificuldade, era assaltado por terríveis acessos de tosse, não me mantinha equilibrado e estava apossado de funesta sonolência. Andava nesta obstinada teimosia há uma semana, ante os reparos dos filhos e as reprimendas da Isaura, que custodia as minhas disposições com a benevolência e a firmeza que lhe conferem cinquenta anos de vida em comum. Éramos dois miúdos e durante estes anos todos temos enfrentado vendavais sem conta. Continuamos dois miúdos, um pouco mais velhos.
Cheguei, pois, ao hospital num estado deplorável, em razão da minha presunção e soberba. Presumiu-se que uma virose me atacara; depois, talvez fosse vítima de embolia pulmonar. O despiste das doenças não impediu a minha acentuada fraqueza. Fui rodeado imediatamente de atenções e de solicitudes que logo notei serem iguais para todos quantos haviam entrado naquele crisol de sofrimento e de espanto. Pertencia, agora, a esta comunidade na qual o abatimento, a dependência, a fragilidade e a perda do recato pertencem ao mesmo número de resignadas admissões.
Pouco depois fui transferido para o Hospital Pulido Valente. Explicaram-me que, na Unidade de Cuidados Intermédios, dispunha de assistência assídua e especializada, e a minha miséria encontrava resposta na bondade, no carinho, no desvelo de um grupo de raparigas e de rapazes não só atento à medicação, procurando magoar-me o mínimo possível, com o furo nas veias débeis, como me lavavam, me limpavam, me cuidavam com a grandeza de quem não precisa de reciprocidade. A dimensão da humanidade na sua expressão acaso mais nobre. Sou-lhes eterno devedor.
Ao observá-los e à sua compassiva densidade, apreendi que os macacos sem fé e sem sonho, que nos governam, desejam não só dar cabo do Serviço Nacional de Saúde: eles querem, sobretudo, dissolver os laços de benevolência, essa ligação suave, decente e poderosa entre alma e coração, substância e essência que constituem a construção social e o espírito do SNS. O que são alianças de piedade e de solidariedade entre os que sofrem e os que cuidam, ajudam e amparam, eles ambicionam transformar em gélidas demonstrações profissionais, "justificadas" pelo dinheiro.
Estes que tais encontram, porventura, na maldita frase do banqueiro Ulrich ["eles aguentam, aguentam"] o mais sórdido apoio aos seus projectos de demolição social e ética. Estão do outro lado das coisas, ignoram a natureza concêntrica das grandes simpatias humanas. Têm o coração oco. Nada sabem dessa humanidade assustada, desvalida, a quem querem roubar o pouco que lhes resta, que sofre nas ruas, nos hospitais, que envelhece no pasmo de desconhecer o que lhes acontece. E ocorre-me a frase de Raul Brandão: "Apenas anseiam por um pouco de ternura e nada mais."
Baptista-Bastos, crónica publicada no Diário de Notícias de hoje

Sexo não é trabalho


"O anúncio, que vi na SIC Notícias, tem por título "Direitos iguais". No ecrã dividido em dois, apresentam-nos a Júlia e a Ana, duas mulheres em movimento.
O texto que acompanha as vidas dinâmicas de Júlia e Ana diz o seguinte: «As duas têm direito ao trabalho. O direito a boas condições de trabalho. O direito ao respeito. O direito a um pagamento justo. O direito de escolher e recusar clientes. O direito à segurança».
Na última imagem, a Júlia segreda, rindo, ao ouvido de um homem e a Ana desenrola um papel sobre um estirador. O texto explica: «A Júlia é trabalhadora do sexo. A Ana é arquitecta».
O ‘trabalho’ do sexo é representado por cumplicidades e gargalhadas; muito menos enfadonho, nesta demonstração, do que o solitário trabalho da Ana, realizando projectos de arquitectura.
A frase final do anúncio é a seguinte: «Trabalho sexual é trabalho».
Em letras minúsculas, só passíveis de leitura quando se coloca o ecrã em pausa, encontra-se o seguinte texto: «A realização deste vídeo foi possível através do projecto Indoors, com o apoio financeiro do Programa Daphne III da Comissão Europeia. Os conteúdos deste vídeo são da exclusiva responsabilidade do autor e não podem ser considerados uma tomada de posição oficial da Comissão Europeia».
Seguem-se, muito mais legíveis, os logotipos da apdes (Agência Piaget para o Desenvolvimento), do Indoors, do programa Daphne (um programa da União Europeia para combater a violência contra mulheres e crianças), da União Europeia e da Sic Esperança (projecto de solidariedade das empresas do universo SIC, que tem o estatuto de Instituição Privada de Solidariedade Social).
Não, o trabalho da Júlia não é igual ao trabalho da Ana. Vender o corpo a um cliente não é a mesma coisa que vender-lhe um projecto de arquitectura.
O sexo é a mais íntima das trocas humanas, não pode ser considerado um ‘produto’: quem entrega o corpo a troco de dinheiro perdeu o respeito por si mesmo, pela expressão dos seus afectos, pelo seu prazer.
Perde algo de essencial da sua condição humana.
O respeito por quem se prostitui deve consistir na oferta de alternativas a esse modo de sobrevivência. A prostituição é, sempre, uma forma de violência.
Pessoalmente, não acredito em ‘prostituição consentida’, como não acredito na felicidade dos bombistas suicidas: parece-me evidente que estas actividades são respostas violentas a uma violência fundamental e fundadora.
Estranho que a União Europeia, a agência Piaget para o desenvolvimento e a SIC Esperança patrocinem a ideia de que vender sexo seja igual a vender desenhos de casas e jardins. Não é: ‘trabalho sexual’ é a expressão politicamente correcta para esconder o abuso implícito na palavra ‘prostituição’.
Se um museu quiser fazer um anúncio na SIC contará com o apoio da SIC Esperança, e da Agência Piaget, e da Comissão Europeia? Pois é. Trabalho cultural é trabalho contra a violência. Sexo pago, não."
Inês Pedrosa, crónica publicada no jornal Sol de 8 de fevereiro de 2013.

A Europa ou o Caos


"António Lobo Antunes acaba de subscrever o manifesto «A Europa ou o Caos», apresentado por um conjunto de prestigiados intelectuais europeus que apela à consciência dos governantes e dos cidadãos europeus no sentido de se empenharem ativamente na construção europeia como uma questão de sobrevivência.
UM MANIFESTO QUE APELA À AUDÁCIA
Com palavras duras e certeiras, o documento constitui um oportuníssimo alerta, em nome da paz, da democracia e da cultura. Assinam o manifesto, além de António Lobo Antunes: Vassilis Alexakis, Hans Cristoph Buch, Juan Luis Cebrián, Umberto Eco, György Konrad, Julia Kristeva, Bernard-Henri Lévy, Claudio Magris, Salman Rushdie, Fernando Savater e Peter Schneider. O título do documento é bem demonstrativo do momento dramático que atravessamos - «Europa ou o Caos» - e os autores têm no seu currículo bastante empenhamento cívico ativo para merecer a nossa máxima atenção. Quando os subscritores do texto afirmam que «a Europa não está em crise, está a morrer» lançam um apelo forte no sentido de regressarmos à ideia de Europa como «sonho e como projeto», segundo o espírito defendido por Edmund Husserl nas vésperas da catástrofe de 1939: a Europa como vontade e representação, como sonho e construção, que soube transformar-se numa ideia nova e que pôde construir a paz sobre os escombros deixados pela Segunda Grande Guerra, favorecendo a prosperidade e a democracia. Ora, essa Europa está a desfazer-se perante os nossos olhos, pelo que se torna indispensável encontrar respostas de cooperação e de vontade, que permitam evitar a tragédia. Estamos, pois, como já se disse, perante uma questão de sobrevivência. São a paz, o desenvolvimento, a democracia e a diversidade cultural que estão em causa. Naturalmente que há vozes cínicas a dizer que a fragmentação é inexorável, como a injustiça ou como a pobreza, contudo, temos de fazer tudo para evitar que a catástrofe regresse e devaste o velho continente e o mundo. O problema é cultural, político, económico e social. É cultural, porque tem a ver com a capacidade criadora, com a racionalidade e com o respeito mútuo. É político, porque obriga ao diálogo e à compreensão entre poderes e vontades diferentes, que procuram encontrar valores e interesses comuns. É económico porque exige o entendimento do valor e da gratuitidade, do que tem preço e do que não tem, pondo a capacidade de produzir riqueza ao serviço das pessoas e no lugar das aparências e da especulação. É social, uma vez que a confiança e a coesão têm de ter consequências no respeito pela eminente dignidade de todas as pessoas, sendo a liberdade igual e a igualdade livre faces da mesma moeda.
PROCURAR O QUE É COMUM
Naturalmente que há as divergências e a complexidade (que Edgar Morin enfatiza), no entanto importa integrar racionalmente a capacidade de regular os conflitos, as diferenças e as contradições, procurando entender os interesses e os valores comuns, em nome da igual consideração e respeito por todos (de que nos fala Ronald Dworkin). Não se trata, assim, de propor soluções utópicas ou idílicas, nem pacifismos que apenas abrem caminho à conflitualidade desregrada e conciliam com a especulação financeira, que agrava as injustiças e as desigualdades. Robert Schuman, um dos pais fundadores do projeto europeu, insistiu especialmente na procura gradual de pontes capazes de favorecer e de fortalecer o contacto entre diferentes realidades políticas e sociais, através da simultânea salvaguarda das diferenças e das complementaridades. E quando agora o Primeiro-Ministro britânico acena com o fantasma do eventual fim do Estado-nação e com o perigo do super-Estado europeu parece querer afastar-se do compromisso comum de construir o modelo de paz que Winston Churchill definiu no célebre discurso de Zurique. Se dúvidas houvesse, bastaria ver as preocupações agora explicitadas pelo Presidente Barack Obama. E não esqueçamos que foi a pensar na democracia e na Europa que Churchill recusou o demissionismo de Munique, em 1938. Compreendemos que as circunstâncias de hoje, setenta anos depois do fim da Guerra, num momento em que a memória tem de estar presente para recusar o ressentimento, sejam diferentes, mas o certo é que obrigam à recusa da fragmentação e do nacionalismo. A União Europeia não é um Estado, é uma realidade múltipla assente em Estados livres e soberanos. O federalismo não pode, assim, confundir-se com centralismo e tem de basear-se na participação dos cidadãos a todos os níveis.
RECUSAR A INDIFERENÇA
A indiferença, apesar de tudo, parece prevalecer. O manifesto recorda, aliás, como estamos longe do tempo em que pensadores e artistas de há duzentos anos se mobilizaram em nome da defesa da liberdade dos povos helénicos (em contraste com o encolher de ombros de agora) – Chateaubriand, Byron, Berlioz, Delacroix, Pushkin e Victor Hugo. Ora, o ideal da Europa de defesa de uma convergência de povos e Estados livres e soberanos obriga a que a soberania e a liberdade sejam defendidas não na lógica protecionista e fragmentária, mas como solidariedade e cooperação. E se Atenas é atingida, também o é Roma, sendo símbolo da distinção entre lei e direito, entre o ser humano e o cidadão. No fundo, estamos perante as bases mais sagradas da democracia. A lógica da especulação financeira parece ocupar o espaço da dignidade pessoal, da liberdade, da igualdade e do respeito mutuo, pedras ancilares do humanismo. E regressam os perigos dos populismos, dos chauvinismos, das ideologias de exclusão e ódio. Onde está, afinal, perguntam os autores, «a pequena internacional de espíritos livres que lutavam, há vinte anos, por essa alma europeia, simbolizada por Sarajevo, debaixo das bombas e vítima de uma desapiedada limpeza étnica?». O certo é que não basta a moeda única, é preciso que o Euro se ligue às economias e a fiscalidades convergentes, onde haja justiça distributiva. Sem União política, sem políticas partilhadas, sem regras comuns quanto à responsabilidade pelas contas, sem governo económico, tudo não passará de uma frágil quimera. «Sem unidade política (diz o manifesto), a moeda dura uns quantos decénios e depois, aproveitando uma guerra ou uma crise, dissolve-se». Daí porem o dilema: «União política ou barbárie», acrescentando: «federalismo ou explosão, regressão social, precariedade, desemprego disparado, miséria». No fundo, não estamos num momento de panos quentes e de ambiguidades: «ou a Europa dá um passo mais e decisivo, no sentido da integração política, ou sai da História, some-se no caos». Dentro desta preocupação, ao falar do «crepúsculo europeu», Eduardo Lourenço fala de uma «metamorfose sem precedentes», temendo que a Europa se dissolva «diante dos nossos olhos impotentes ou já anestesiados em qualquer próximo futuro que será tudo menos herança ou sublimação do nosso mítico património» (Público, 15.1.13). E Ulrich Beck insiste na necessidade de a Alemanha dizer se quer ou não uma Europa europeia e democrática. Estes são os pontos fundamentais, a que não podemos fugir. É a nossa própria vida que esta em xeque."
Guilherme d'Oliveira Martins, site do Centro Nacional de Cultura.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

O primeiro dia

Quando finalmente se decidiu a sair da janela, já dele não havia nem o rasto. O barulho da porta a fechar-se e o som dos seus passos pela escada a baixo estavam ainda dentro dos seus ouvidos. Quando ela era pequena, gostava às vezes de bater ao de leve com a ponta do garfo no copo, e ouvir aquele som fininho que parecia não acabar nunca. Então a mãe ralhava, porque o copo era de cristal e podia partir-se com aquelas patetices. Patetice era agora ela recordar-se dessas coisas, tão a despropósito, onde já vão os copos de cristal, meu Deus!, só porque o silêncio misturado com o barulho da porta a fechar-se parecia também não acabar nunca, fininho, fininho, a en- terrar-se no coração. Olhou para o relógio. Como preencher o vazio daquela manhã diferente, subitamente imensa? Pegou no telefone, a vontade de contar a toda a gente, de telefonar para toda a parte.
A amiga não se admirou sequer da hora matinal, parecia esperar até o telefonema. Perguntou apenas:
— Então?
— Lá foi — disse ela. — Lá foi. Sem uma palavra, sem se voltar na escada, sem um aceno.
— E tu à espera de uma cena estou mesmo a ver. Muitos choros, muitas lágrimas, sei lá.
— É estúpido, mas acho que sim, que estava à espera disso. Agora é tudo tão vazio. E o pior é que ele está em toda a parte: o seu cheiro, as suas camisolas, tudo. Às vezes até me parece que o ouço chamar por mim. Aqui estou feita parva, no meio da casa, sem saber o que fazer do meu tempo, da minha vida.— Aguentas, como nós todas aguentamos. Com o Ricardo foi a mesma coisa. Saiu de manhã como se fosse a coisa mais natural do mundo, e esta casa também ficou enorme. Ficam sempre enormes as casas quando eles saem.
E acrescentou: — O primeiro dia é que custa mais. Depois habituamo-nos. Combinaram um vago almoço para um daqueles dias vazios, e
acabaram por desligar. Se ao menos ela tivesse um emprego, um lu- gar onde estar a horas certas logo pela manhã, tudo seria diferente, as horas teriam decerto menos minutos, os minutos menos segundos. Assim, era um inferno: os olhos pregados naquela porta, naquela janela.
Ainda não eram quatro horas quando ouviu o toque da buzina. Largou tudo, era ele, tinha de ser ele! Correu à janela e viu-o, corado e feliz, a sair da carrinha, a pasta nova carregada às costas, a gritar- -lhe da rua:
— Mãe! Mãe! Já sei escrever o meu nome!
(Alice Vieira, do livro de crónicas "Bica Escaldada")

Touchscreen

(publicado no The New Yorker)

domingo, 10 de fevereiro de 2013

Conversa interessantíssima


Um novo espaço, designado "Forma de vida" que se define como "um fórum bimestral de literatura e ideias". Disponível, para além de um vídeo e do primeiro número da revista eletrónica, uma entrevista a Ricardo Araújo Pereira. Conversa séria, intelectual e, como não podia deixar de ser, com muita graça. Humor inteligente!
https://formadevida.org/podcast/

Ganhar batalhas, perder a guerra


"Cada vez que me gana el pesimismo sobre Israel y pienso que la derechización de su sociedad y sus gobiernos son irreversibles y seguirán empujando al país hacia una catástrofe que abrasará a todo el Medio Oriente y acaso al mundo entero, algo ocurre que me devuelve la esperanza. Esta vez han sido una conferencia de David Grossman, en el Hay Festival de Cartagena, y el estreno, aquí en Nueva York, en el cinema del Lincoln Plaza —un sótano que por su programación, su público y hasta por su olor me recuerda a los queridos cinemas de arte parisinos de la rue Champollion— del documental The Gatekeepers(Los Guardianes), de Dror Moreh. Ambos testimonios prueban que todavía hay un margen de lucidez y sensatez en la opinión pública de Israel que no se deja arrollar por la marea extremista que encabezan los colonos, los partidos religiosos y Benjamin Netanyahu.
David Grossman no es sólo un excelente novelista y ensayista; también una figura pública que defiende la negociación entre Israel y Palestina, la cree todavía posible y está convencido de que en el futuro ambos Estados pueden no sólo coexistir sino colaborar en pos del progreso y la paz del Medio Oriente. Habla despacio, con suavidad, y sus argumentos son rigurosos, sustentados en convicciones profundamente democráticas. Fue uno de los seguidores más activos del movimiento “Paz, ahora”, y ni siquiera su tragedia familiar recientemente padecida —la pérdida de un hijo militar, en la última guerra en la frontera del Líbano— ha alterado su vocación y su militancia pacifistas. Sus primeros libros incluían muchas entrevistas y relatos de sus conversaciones con los palestinos que a mí me sirvieron de brújula para entender en toda su complejidad las tensiones que recorren a la sociedad israelí desde el nacimiento de Israel. Su conmovedora intervención, durante el Hay Festival, en Cartagena, fue escuchada con unción religiosa por los centenares de personas que abarrotaban el teatro.
El documental del cineasta israelí Dror Moreh es fascinante y no me extraña que haya sido seleccionado entre los candidatos al Oscar en su género. Consiste en entrevistas a los seis exdirectores del Shin Bet, el servicio de inteligencia de Israel, es decir, los guardianes de su seguridad interna y externa, quienes, desde la fundación del país, en 1948, han combatido el terrorismo dentro y fuera del territorio israelí, decapitado múltiples conspiraciones de sus enemigos, liquidado a buen número de ellos en atentados espectaculares y sometido a la población árabe de los territorios ocupados a un escrutinio sistemático y a menudo implacable. Parece inconcebible que estas seis personas, tan íntimamente compenetradas con los secretos militares más delicados del Estado israelí, hablen con la franqueza y falta de miramientos con que lo hacen ante las cámaras de Dror Moreh. Una prueba relevante de que la libertad de opinión y de crítica existe en Israel. (El director de la película ha explicado que, al pasar esta por la seguridad del Estado, ya que aludía a cuestiones militares, sólo recibió dos ínfimas sugerencias, a las que accedió).
El Shin Bet ha sido muy eficaz impidiendo atentados contra los gobernantes israelíes tramados por terroristas islámicos, pero no pudo atajar el asesinato del primer ministro Yitzhak Rabin, el gestor de los Acuerdos de paz de Oslo, por un fanático israelí. Eso sí, consiguió evitar el complot de un grupo terrorista de judíos ultra religiosos que se proponía dinamitar la Explanada de las Mezquitas o Monte del Templo, lo que sin duda hubiera provocado en todo el mundo musulmán una reacción de incalculables consecuencias.
“Para combatir al terror hay que olvidarse de la moral”, dice Avraham Shalom, quien debió renunciar al Shin Bet en 1986 por haber ordenado asesinar a dos palestinos que secuestraron un autobús. Anciano y enfermo, Shalom es uno de los más fríos y destemplados de los seis entrevistados a la hora de describir al Israel de nuestros días. “Nos hemos vuelto crueles”, afirma. Y, también, que se ha perdido el idealismo y el optimismo que caracterizaba a los antiguos sionistas. Los gobiernos de ahora, según él, evitan tomar decisiones de largo aliento. “Ya no hay estrategia, sólo tácticas”.
Por su parte, Ami Ayalon, que dirigió el Shin Bet entre 1996 y 2000, lamenta que sus compatriotas no quieran ver ni oír lo que ocurre a su alrededor. “Cuando las cosas se ponen feas, dice, lo más fácil es cerrar los oídos y los ojos”. La frase que más me impresionó en todo el documental la dice él mismo: “Ganamos todas las batallas, pero perdemos la guerra”. Yo creo que no hay mejor definición de lo que puede ser el futuro de Israel si sus gobiernos no enmiendan la política de intransigencia y de fuerza que ha sido la suya desde el fracaso de las negociaciones con los palestinos de Camp David y Taba.
Contrariamente a lo que se esperaría de estos hombres duros, que han tomado decisiones dificilísimas, a veces sangrientas y feroces, en defensa de su país, ninguno de ellos defiende las posiciones de esa línea fanática y sectaria que encarna el movimiento de los colonos, empeñados en rehacer el Israel bíblico, o el partido del ex ministro de Relaciones Exteriores de Netanyahu, Avigdor Lieberman. Aunque con matices, los seis, de manera muy explícita consideran que la ocupación de los territorios palestinos, la política de extender los asentamientos y la pura fuerza militar han fracasado y preludian, a la corta o a la larga, un desastre para Israel. Y que, por ello, este país necesita un gobierno con genuino liderazgo, capaz de retirarse de los territorios ocupados como Ariel Sharon retiró a las colonias de la Franja de Gaza en 2005. Los seis son partidarios de reabrir las negociaciones con los palestinos. Avraham Shalom, preguntado por Dror Moreh si ese diálogo debería incluir a Hamás, responde: “También”. Y apostilla, aunque sin ironía: “Trabajar en el Shin Bet nos vuelve un poco izquierdistas, ya lo ve”.
Escuché al director de The Gatekeepers la noche del estreno de su película en Nueva York y las cosas sensatas y valientes que decía se parecían como dos gotas de agua a las que le había oído, unos días antes, en Cartagena, a David Grossman. “¿Qué se puede hacer para que esa opinión pública que no quiere ver ni oír lo que ocurre, se vea obligada a hacerlo?”, le preguntó una espectadora. La respuesta de Dror Moreh fue: “El presidente Obama debe actuar”.
Su razonamiento es simple y exacto. Estados Unidos es el único país en el planeta que tiene todavía influencia sobre Israel. No sólo por la importante ayuda económica y militar que le presta, sino porque, enfrentándose a veces al mundo entero, sigue apoyándolo en los organismos internacionales, vetando en el Consejo de Seguridad todas las resoluciones que lo afectan, y porque en la sociedad estadounidense las políticas más extremistas del gobierno israelí cuentan con poderosos partidarios. Conscientes del desprestigio internacional que sus gobiernos le han ganado, de las amonestaciones y condenas frecuentes que recibe de las Naciones Unidas y de organizaciones de derechos humanos debido a la expansión de los asentamientos y su reticencia a abrir negociaciones serias con el Gobierno palestino, Israel se ha ido aislando cada vez más de la comunidad internacional y encerrándose en la paranoia —“El mundo nos odia, el antisemitismo triunfa por doquier”— y en un numantismo peligroso. Sólo Estados Unidos puede convencer a Netanyahu de que reabra las negociaciones y acelere la constitución de un Estado Palestino y de acuerdos que garanticen la seguridad y el futuro de Israel. David Grossman y Dror Moreh lo creen así y con constancia y valentía, en sus campos respectivos, obran para que ello se haga realidad.
Ojalá ellos y los israelíes que piensan todavía como ellos consigan su designio de diálogo y de paz. Yo tengo algunas dudas porque también en Estados Unidos hay muchísima gente que, cuando se trata de Israel, prefiere taparse las orejas y los ojos en vez de encarar la realidad."
Mario Vargas Llosa, El País de hoje

sábado, 9 de fevereiro de 2013

A Origem do Mundo tem face?


A vulva seminal de Gustave Courbet em A Origem do Mundo pode associar-se pela primeira vez a uma cara prazenteira? Como uma peça de um puzzle, a revista Paris Match publica esta semana a história do perito francês que diz ter identificado a modelo de Courbet numa outra pintura, adquirida por um coleccionador num antiquário. Mas outros peritos desconfiam: a história da “descoberta” do novo quadro parece ser demasiado boa para ser verdade e tecnicamente há muito de “duvidoso” na tentativa de emparelhamento das duas pinturas.
Retrato de uma vulva hirsuta, aberta a reacções e interrogações, A Origem do Mundo do mestre francês já motivou apreensões de livros que a tinham na capa (em 2009, em Braga) e andou por colecções privadas grande parte do século XX. É, portanto, uma das pinturas mais reconhecíveis e mais dadas à polémica, mas menos expostas ao público da arte. E, no entanto, não é um rosto, como o de Mona Lisa, que a torna facilmente identificável. Agora, o autor do catalogue raisonné da obra de Courbet, Jean-Jacques Fernier, garante na revista semanal francesa Paris-Match que esta é mesmo uma peça em falta num puzzle cuja existência se desconhecia.
O especialista na obra do pintor francês (1819-1877) explica à Paris-Match que em Janeiro de 2010 um colecionador que apenas quer ser conhecido como “John” comprou a tela de 33X41 centímetros num antiquário de Paris por 1400 euros. A pintura retrata uma mulher com uma expressão de deleite e entrega e “John” tê-la-á entregue a Fernier, que por seu turno a passou a um laboratório especializado.
O perito admite não ter acreditado inicialmente na possibilidade de aquela pintura de uma mulher retratada apenas do pescoço para cima – A Origem do Mundo representa uma mulher dos ombros até aos joelhos – pudesse ser a cabeça daquele corpo da famosa pintura de Courbet. Mas, agora, Fernier não só acredita que é a mesma mulher, como também a identifica: será Joanna Hiffernan, a modelo e amante irlandesa do pintor James Whistler. O pintor ter-lhe-á omitido o rosto para proteger a identidade da modelo, teoriza Fernier.
O Museu d'Orsay, em Paris, que tem A Origem do Mundo na sua colecção desde o início da década de 1990, quando a sua última proprietária particular, Sylvia Bataille (mulher de Georges Bataille e de Jacques Lacan), morreu e a pintura foi entregue ao Estado francês, recusou comentar o caso. Disse, ainda assim à AFP, que os seus conservadores têm “o dever de reserva, tratando-se de obras nas mãos de particulares”.
Um mistério sem pistas
Fernier diz encontrar semelhanças no tom da obra, entre outros detalhes técnicos, que são desmontados por outros especialistas. O jornal especializado La Tribune de l’Art chama à capa da Paris-Match uma “falsa cacha” e lamenta que “o perito, respeitado especialista na obra de Courbet, possa dar prova de uma tal ligeireza” ao confirmar a análise científica do laboratório.  
Hubert Duchemin, outro grande conhecedor de pintura, não hesita, em declarações à AFP: “Os dois quadros não vêm do mesmo pincel.” Esta sexta-feira, o diário Le Monde publica um texto do crítico de arte e escritor Philippe Dagen em que, além da história quase romanesca do coleccionador que descobre um tesouro por uma pechincha num antiquário parisiense empoeirado – “bela história, ainda que assaz previsível” –, questiona a técnica e a própria ideia do “corte”.
Por que é que “nenhum dos contemporâneos que viu a obra – sobretudo [o escritor e fotógrafo] Maxime du Camp – não disse uma palavra sobre tal operação? E por que é que Khalil-Bey [diplomata turco que foi dono de A Origem do Mundo] teria aceitado ficar com um bocado e não com a obra inteira?”, pergunta.
A mais famosa obra de Courbet, que Gérard Lefort, jornalista do Libération, comparou há alguns anos à sua equivalente de Leonardo da Vinci - é "a Mona Lisa do sorriso vertical" –, foi uma encomenda do milionário turco-egípcio Khalil-Bey, que a expunha na casa de banho, dada a temática e o realismo da pintura. “Não era possível vender um quadro tão erótico naquela altura [final do século XIX], era impensável”, explicou Fernier à Reuters. “Quando Khalil-Bey o comprou, Courbet tirou-lhe a cabeça”, disse o perito à agência de notícias britânica na véspera da publicação das dúvidas de Dagen nas páginas do jornal Le Monde.  
Na quinta-feira, quando a revista anunciou na capa a sua “descoberta”, o Le Figaro desconfiou da veracidade da teoria de Fernier e da ideia de que existiriam outras partes da obra. Seguiu-se o conservador do Museu Courbet, em Ornans, cidade onde o pintor nasceu, que frisou à AFP que “A Origem do Mundo sempre foi descrita pelos críticos da época como uma mulher sem cabeça nem pernas”. E acrescentou que Hifferman foi retratada pelo pintor inúmeras vezes. “Era ruiva e acho que [esses retratos] se parecem pouco com a cara da morena no quadro da Paris-Match.
Tecnicamente, Dagen reitera as suas reservas: “A proximidade estilística [entre as obras ] é duvidosa. Nem a luz, nem o toque, nem a textura da pele, nem o cromatismo são homogéneos. Supondo que, se esta face [retratada] é de Courbet, datará do começo da sua carreira.”
(do site do jornal Público)

Rui Cardoso comenta o Expresso


Sem a cultura, para que é que estamos a lutar?


"Para esquecer maleitas e desgraças afins, nada melhor do que enchermo-nos de coragem...e desatar a rasgar papéis. Mas às vezes temos de parar.Porque de repente nos cai nas mãos, vinda sabe-se lá donde, memória de um tempo que julgávamos esquecido, ou em que já não pensávamos há anos. Uma fotografia.
Olho para ela e lembro-me de tudo.
E porque os nossos chefes de redacção nos ensinavam que devíamos sempre escrever todos os elementos nas costas das fotografias, esta, que tem o carimbo do DN, diz-me que foi tirada no Teatro da Trindade, a 20 de Setembro de 1978, pelo meu camarada de redacção Luís Saraiva. Os fotografados são Anna Máscolo e Anton Dolin.
Acho que me lembro deste dia do princípio ao fim. Da entrevista que fiz a ambos, da conversa que se prolongou tarde fora, da verdadeira força da natureza que era (e é...) a Anna, ao lado da aparente fragilidade do Anton Dolin - e eu nas nuvens, porque estava a falar com dois monstros da dança. Fiquei amiga da Anna até hoje.
Sorrio para a fotografia, e tenho a certeza de que nenhum chefe de redacção me daria hoje uma página inteira do jornal do dia (e o DN tinha ainda aquele formato gigantesco!) para eu encher com uma conversa sobre dança. E porque estas coisas andam todas ligadas, penso no pouco espaço que há hoje para a cultura, na pouca atenção dos governantes - como se ela fosse dispensável, uma espécie de traste que herdámos dos antepassados e estamos mortinhos por deitar fora. Daí que nem me espante a ideia de acabar com o Ministério da Cultura.
E agora deixem-me terminar esta crónica com uma história do século passado.
Durante a guerra, a Inglaterra fazia esforços titânicos para se aguentar com as despesas. Um dia, propuseram a Churchill, para ajudar o "esforço de guerra", como então se dizia, cortes muito substanciais na cultura.
Churchill recusou. Sem a cultura, "what are we fighting for?" ("por que é que estamos a lutar?")
Outro tempo, claro.
Outra gente, também."
Alice Vieira, no Jornal de Notícias de 3 de junho de 2011.

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Impressionismo e ar livre. De Corot a Van Gogh

Camille Corot (1796 – 1875), The Waterfall of the Marmore, Terni, c.1826
A exposição "Impressionismo e ar livre" está patente, até ao dia 12 de maio, no Museu Thyssen-Bornemisza. São 116 obras pintadas ao ar livre da autoria de Corot, Turner, Constable, Rousseau, Courbet, Monet, Sisley, Renoir, Cézanne e Van Gogh, entre outros.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Polémicas acerca de currículos

"Há meses, houve barulho porque Artur Baptista da Silva acrescentou umas coisas ao currículo. Agora, há barulho porque Franquelim Alves retirou umas coisas ao dele. Com franqueza, decidam-se."
Ricardo Araújo Pereira, Visão de hoje

domingo, 3 de fevereiro de 2013

Dois tempos: o dos de cima e o dos de baixo

"Se aguentar significa continuar vivo, como na frase vil de um banqueiro, que trata os sem-abrigo como exemplo aceitável, muitos vão continuar vivos. Aleluia! Outros vão morrer na tristeza e no desespero e outros pedirão à morte que venha com pressa. Mas o tempo de todos é imediato, doloroso, sem futuro, para eles não tem qualquer significado nada que não mude a sua condição a muito curto prazo."
José Pacheco Pereira (Público de ontem)

Vergílio Ferreira


"E foi como se o meu berro embatesse de monte em monte desorientado louco, foi como se. Devia haver, submersas petrificadas, vozes de outrora de quantos homens um dia em esperança em loucura pela infinidade dos milénios acordai! gritai! afirmai a vossa força contra a surdez obtusa do universo. Fico trémulo à janela, o queixo, sinto-o, tremente no absurdo da minha cólera. Tenho de ir fechar as janelas, tenho de ir abrir as lojas, tenho de. Escuto ainda o silêncio do mundo, escuto a voz que não vem, a cabeça ligeiramente inclinada ao grande espaço vazio. Ao fundo do vale, pequenos campos de verdura, ao longe no translúcido da distância, são as pegadas do homem, pequenos indícios brancos de aldeias. Uma voz que se erguesse, uma voz ouvida e que se calou - estou só. Ah, o elo de uma voz que nos defenda contra a agressão das coisas. São coisas mudas enquanto a nossa voz fala mais alto, depois são elas que falam. Fantásticas lôbregas. Como olhares trocados na sombra. Um espírito vive nestes móveis, nos desvãos das escadas, nos esconderijos do sótão, das lojas - tenho de as ir abrir, tenho de. Construir o futuro sem futuro para construir. Inventar um rumo contra um muro - se tu cantasses, voz anónima da terra. Vem-me de novo o apelo à garganta, tenho medo de mim. Desta coisa que está em mim, viva alucinante. Esta presença que tenho de esquecer para que eu viva tudo à superfície. À minha volta o universo, dentro, na sala, o bater do relógio. E um bater lento, como a cadência do destino. É um bater compassado como os passos da morte - e onde estarão as chaves?"
Vergílio Ferreira (livro Para Sempre)