segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Amanhã já será tarde


Num momento particularmente difícil da vida nacional, as universidades entendem dirigir-se ao país através de uma Declaração conjunta, que foi distribuída à entrada desta sessão. É um gesto que vale como gesto, que vale como um momento de suspensão do tempo para dizermos, colectivamente, Assim, não, para explicarmos, colectivamente, que Amanhã já será tarde.
A presença, na mesa, do Presidente do Conselho Geral e do Presidente da Associação Académica da Universidade de Lisboa revela a união da Academia neste dia de grande significado para todos nós.
As universidades são instituições seculares, com um passado que se confunde com a própria existência da nação. Nas últimas décadas, têm sido bases fundamentais de uma sociedade que recusa o destino de um país desqualificado e periférico. Não podemos voltar atrás. O que se joga, hoje, não é um problema interno das universidades. É um problema de Portugal e dos portugueses.
As universidades têm a herança do passado e têm a responsabilidade do futuro. Mas nada poderão fazer se ficarem sem presente. Não vou falar-vos, outra vez, da redução de 50% no financiamento público das universidades, desde 2006. Não vou falar-vos, outra vez, da diminuição de 30%, apenas nos últimos dois anos. Não vou falar-vos, outra vez, do desastre que seria mais um corte de 10% no próximo ano. Já ninguém suporta os números, nem as queixas, nem as lamentações. Já ninguém aguenta esta pátria “eterna mas perdida”, sem sequer sabermos se foi no passado ou no futuro onde a perdemos (Sophia de Mello Breyner).
Mas nós estamos aqui e temos, mais do que nunca, um dever de presença. É difícil? Eu sei que é difícil, mas é agora que o país precisa de nós. A pergunta que devemos fazer não é sobre esse “enorme desvio [que existiria] entre aquilo que os portugueses acham que devem ser as funções sociais do Estado e os impostos que estão dispostos a pagar”. Não, essa não é a pergunta.
A nossa pergunta é outra: Será que os portugueses querem cortar nos sectores do conhecimento e da ciência onde se promove o que há de melhor na sociedade? Será que os portugueses estão dispostos a desperdiçar o investimento feito nas últimas décadas, resignando-se perante o regresso de uma sociedade da pobreza e da miséria, de um país sem ambição e sem futuro?
É esta a nossa pergunta, porque sabemos que, em períodos de grande perturbação, é preciso manter o rumo. Sem objectivo, sem rumo, não há caminho. Andaremos aos círculos, cada vez mais extenuados, mas não sairemos do mesmo lugar. O que está em causa não são quaisquer prerrogativas ou privilégios internos às universidades. Não. O que está em causa é a existência de instituições capazes de construir o único caminho de futuro para Portugal. Porque sem formação superior, sem conhecimento, sem ciência, não haverá riqueza, nem empregos, nem qualquer possibilidade de superar a crise que hoje vivemos.
O que nos define não são os problemas que temos, mas a maneira como os enfrentamos. Este é o momento para dizer, e para mostrar, que as universidades são capazes não só de formar os jovens, não só de produzir conhecimento de alto nível, mas também de colocar os jovens que formam e o conhecimento que produzem ao serviço das pessoas e da sociedade. Mais: para mostrar que as universidades são, já hoje, lugares de inúmeras iniciativas, onde se concretizam ideias e projectos sociais, culturais, empresariais, tecnológicos; que as universidades são, já hoje, espaços centrais da vida económica e do desenvolvimento social.
É imensa a responsabilidade histórica que temos pela frente: demonstrar que o país não está condenado a ser o que foi durante grande parte do século XIX e do século XX e que pode ser “outra coisa”, que pode finalmente compreender – como escrevia Manuel Laranjeira a Miguel de Unamuno – “que a inteligência é o grande capital dos povos modernos e a cultura a mais fecunda das revoluções”.
É esta a responsabilidade da nossa geração. Hoje. Porque Amanhã já será tarde. Não vale a pena fazermos de conta que sabemos o que não sabemos, que podemos o que não podemos. Mas é preciso que alguém faça o que tem de ser feito. Ou damos agora o passo que ainda falta – depois da formação, depois da conhecimento, conseguir que a formação e o conhecimento sejam decisivos na organização da sociedade, da economia e do trabalho – ou voltaremos muitas décadas atrás, a um país ao qual nenhum de nós quer regressar.
Lembro-me quando Lóri, personagem de Clarice Lispector, explicava que só sabia que já começara uma coisa nova e que nunca mais poderia voltar à sua condição antiga. Em Abril, o país começou uma vida nova e não pode voltar à sua condição antiga. Para isso precisa das universidades e da sua capacidade de inventar o futuro.
Aqui, na Universidade de Lisboa, não vivemos entrincheirados, vergados à ditadura da sobrevivência. Em tempos de extrema dificuldade, temos conseguido reforçar a nossa coesão e o nosso trabalho. Não há muitas oportunidades para agradecer a todos os que fazem a universidade no dia-a-dia. Quero fazê-lo, agora, agradecendo sobretudo aos membros dos órgãos de governo da Universidade (conselho geral, senado, conselho universitário) e aos órgãos de governo das Faculdades (assembleias, direcções, conselhos científicos, conselhos pedagógicos), agradecendo a todos a atitude exemplar que têm revelado nestes tempos de tanta dificuldade.
Aqui, na Universidade de Lisboa, sabemos bem que não há nada pior do que a política do pior. Não estamos acomodados. E, por isso, temos conseguido construir, em diálogo com os nossos colegas da Universidade Técnica de Lisboa, um projecto de futuro para as nossas instituições e para o país.
Será o mais importante projecto de defesa da universidade pública no Portugal contemporâneo, o mais importante projecto de construção de uma grande universidade pública, da cidade de Lisboa, da língua e da cultura portuguesa, com projecção na Europa e no mundo.
É possível que o decreto-lei da fusão seja aprovado na próxima semana. A versão que conhecemos garante a democraticidade do processo, consagra uma imprescindível autonomia reforçada e garante o património da nova Universidade. Ficará, assim, concluída a segunda fase do “impossível”: a primeira foi a aprovação nos conselhos gerais e nos senados; a terceira será a elaboração dos estatutos e a eleição dos novos órgãos de governo.
E depois do “impossível”, virá o trabalho difícil, muito difícil e exigente, de construção de uma nova instituição, que saiba ser aquilo com que temos sonhado. É um trabalho que começa de imediato, mas que será, sobretudo, da responsabilidade da geração que agora nos há-de suceder na universidade. Sei bem que “a vida é uma sucessão de absolutos no provisório deles todos” (Vergílio Ferreira). O melhor das universidades está na mudança, na criação, na capacidade de se renovarem e de assim renovarem a sociedade.
Vivemos esta esperança no mesmo dia em que vivemos a angústia de um orçamento que nos pode arrastar para uma situação de bloqueio e de paralisia. É preciso dizer Assim, não. Temos um dever de presença e um dever de palavra. Não podemos deixar para amanhã o que precisamos de dizer hoje.
E hoje sentimos o que Miguel Torga já denunciava há 50 anos, ainda que os nossos tempos sejam, felizmente, muito diferentes dos tempos em que não havia liberdade. Falava contra aqueles que “experimentam a resistência da vítima, e tentam ao mesmo tempo desmoralizá-la. Quando lhes parece oportuno, dão meia dúzia de voltas à tarraxa. E conseguem, ao fim de cada torção, além da certeza de que podem ir mais longe na violência, que ela seja o espelho desencorajante da nossa própria degradação: – E nem assim nos revoltamos”.
Não podemos permitir que continuem a dar voltas à tarraxa. Assim, não. Sem decisões corajosas, que não ponham em causa a nossa vida, que não prejudiquem irremediavelmente a nossa energia, poderemos estar perante o colapso das universidades durante o ano de 2013. Amanhã já será tarde.
Não é um problema apenas do Governo ou das instituições. É um problema dos portugueses. Não dizemos palavras negativas. As nossas palavras são de futuro. Somos uma das poucas soluções de que o país dispõe para sair da crise em que se encontra.
A sociedade tem de ser muito exigente em relação às universidades, mas não lhes pode retirar as condições mínimas de vida e de acção. É uma escolha de fundo, uma das mais importantes, talvez mesmo a mais importante que os portugueses têm de fazer. Em momentos difíceis, mais do que nunca, é preciso estabelecer as prioridades do presente, não em função do presente mas em função do futuro.
Aqui, na Universidade de Lisboa, saberemos escutar as vozes da sociedade, estaremos atentos às decisões que os portugueses têm de tomar, de uma vez por todas, quanto às universidades e ao seu futuro. Mas não temos tempo. Porque Amanhã já será tarde. O que se passar nos próximos dias pode marcar, por muitos anos, a vida da Universidade de Lisboa. Foi isso que quisemos dizer, solenemente, às 12 horas deste dia 9 de Novembro de 2012.
(Discurso do Reitor da Universidade de Lisboa António Sampaio da Nóvoa)

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