segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

José Gil - entrevista

Fotografia de Rodrigo Cabrita

Tem acompanhado os nossos passos. O “medo de existir” sofreu alguma alteração?
O medo mudou, ao mesmo tempo que esse medo continua, um medo fundamental.
Quase genético?
Felizmente não é genético, mas há um outro medo que se espalha, que tem a ver com a situação actual. Um medo de mudar, de perder segurança. Todos nós temos amigos que perderam empregos, que tinham uma carreira quando a catástrofe desabou, que emigraram ou estão prestes a emigrar. É um medo que depende talvez mais do exterior que do interior. O medo de existir é uma espécie de bloqueio de forças, de vida, em nós, que vinha de longe, e que se manifestava na maneira como somos, não expressivos; na maneira como nos aconchegamos, como não sabemos a força do desejo.
Como desconhecemos a própria violência e receamos o escândalo?
Absolutamente. Não queremos conflitos de nenhuma ordem. Como se vivêssemos num casulo. Enquanto a existência é perigo, é risco, e temos de o enfrentar para sermos nós. Recusar o conflito faz parte desse medo de existir. Agora temos outros, concretos, que se manifestam imediatamente, e que se agravam em nós portugueses por causa desse medo de existir. Porque se enxertam nesse medo de existir. Um medo de não poder ter um futuro, um futuro banal, a que as pessoas têm imediatamente direito, como constituir uma família.
São medos demasiado prementes para se pensar no tal medo identitário?
Claro, mas tem a ver também com esse medo essencial. Não o liberta, não o quebra. Uma das percepções possíveis que se pode ter da maneira como este governo está a governar, da governação Passos Coelho, é precisamente através do medo. A contenção, a austeridade, a pressão é tão grande que não só não há alternativas, mesmo mínimas, locais, para certos domínios deste governo, como o governo quer fazer mais ainda que aquilo a que a troika nos obriga.
Um medo em forma de epidemia.
Absolutamente. Imagine que não há saída se não apertarmos o cinto. Significa que, se abrirmos a torneira, se modificarmos um bocadinho no domínio da saúde ou da educação, isto pode levar imediatamente a uma multiplicação de despesas. Há um medo que seca.
Vivendo nós em medo quase permanente com a ideia de “crise”, como dar-lhe a volta?
Como dar a volta ao medo ou à crise?
A ambos seria perfeito.
Não sei como dar-lhe a volta, mas a crise não é portuguesa, como toda a gente sabe. É europeia, senão global. Sobre a crise europeia as coisas vão mal. Não se vê uma saída. Os últimos números que falam do PIB de vários países são para desesperar. Não se vê nem na zona euro nem na organização europeia um futuro. Do que se fala constantemente é da possível desagregação da zona euro, da possível desagregação da UE. Só se fala nisto. Depois há o outro discurso, de que temos de afirmar a Europa. Através de quê, quando tudo vai no sentido contrário?
Dizia esta semana Eduardo Lourenço que não acredita que Portugal venha a “morrer realmente”, apesar da tentação do pessimismo. Alimenta alguma esperança?
Não tenho um outro factor racional que me diga que haverá uma reviravolta nesta linha. Vejo as dificuldades maiores. A solução seria a unificação política da Europa, mas mesmo com um estado federal, diferente, não vejo que seja possível. A esperança vem da inércia, porque não acreditamos que possa haver uma catástrofe na Europa.
Faria falta uma catástrofe?
Não, não. Isso parece-me bastante perigoso. Faz-me lembrar os discursos antes da Segunda Guerra Mundial, em que se dizia que precisávamos era de uma boa guerra para purificar. Não precisamos de boa guerra nenhuma, a guerra só é má, e agora sobretudo. Simplesmente em relação à Europa estamos na mesma situação que temos relativamente à nossa própria morte. Sabemos que vamos morrer, mas não acreditamos. Não é possível, porque viver é auto-suficiente por si. A Europa é a mesma coisa. Se aqui estamos, como é possível que desaparecesse?
Mas pode sentir que se encaminha para um certo suicídio?
O suicídio de quem? A Europa não é uma pessoa, são colectividades coesas ou menos coesas, numa realidade que não se formou ainda. Estou a falar da Europa dos estados-nação, não da Europa que está por detrás disso tudo, que nos forma, a Europa de uma cultura e de uma terra que é muito mais rica que a Europa política e dos estados, que não tem fronteiras definidas.
Esse capital ainda é o bem mais precioso no movimento de resistência?
Certamente, agora é preciso é entender a cultura de uma outra maneira. De uma maneira antropológica, a cultura implica relação com todo o território, com toda uma maneira de ser e de viver e de formar uma colectividade.
Quando fala de território, é possível conjugá-lo com a ideia de um tempo movido, por exemplo, pelo imediatismo das redes sociais? Recordo por exemplo a noção de cronopolítica de Paul Virilio, ou de como a gestão do tempo é tão ou mais decisiva hoje que a gestão do espaço.
Com certeza que também. Simplesmente domar o tempo histórico é pretensão de tal maneira ambiciosa... quase limite em relação à finitude do homem. Há qualquer coisa no tempo que se vai acelerando e que nos vai dominando. Quem pensou melhor isso foi, como disse, o Paul Virilio, urbanista francês, e ele não tem solução. Constata que há uma mudança extraordinária na velocidade e no tempo. Ele dizia na brincadeira que ia passar a andar de burro em Paris, porque já não suportava os carros.
Não temos alternativa senão alinhar na engrenagem?
Quem tem o poder pode alguma coisa, mas não pode muito. Um dos problemas dos governos é tempo, um outro tempo, mas é o tempo. Eles não param para pensar, têm de tomar iniciativas, têm de, têm de. Talvez não tenham de. Podem talvez parar.
Recomendar-se-ia um bocadinho da síndrome do Bartlebly?
Pois, mas repare, no Bartleby aquilo é um meio fechado. Ele é empregado num escritório e toda a relação depende do facto de a fórmula “I would prefer not to” condicionar não só o seu patrão, mas também os colegas. Isso é possível porque é um meio fechado. Quando aparecem os oficiais para o porem fora do escritório, põem-no fora. Porque esses guardas não são condicionados por aquilo. Há dois mundos. Ora nós estamos nisso. Há um mundo que não é condicionado por uma resistência, e é esse mundo que tem força, o mundo da política, dos guardas.

(transcrição de parte da entrevista publicada no jornal i de 25 de Fevereiro de 2012)

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