Por Frei Bento Domingues
(artigo de opinião publicado no jornal Público de 4 de Dezembro de 2011)
O sonho dos fundadores da UE não era a constituição de um império, nem de uma relação de dominadores e dominados
1. Ninguém pode viver só com dúvidas. Bastam as que favorecem o espírito crítico, vigilante perante a propaganda e as pseudo-evidências. As certezas, para serem saudáveis, precisam de abrigar interrogações que as não deixem estabelecer-se como definitivas e irreformáveis.
Isto nada tem a ver com o relativismo como sistema. É apenas o reconhecimento da condição humana, limitada, falível, atraída pelo Absoluto. Quando no filme de Nanni Moretti Habemus Papam, o eleito dos cardeais, assaltado pela dúvida, foge aos que o desejam aclamar na Praça de S. Pedro, o cineasta humanizou o papel do Papa envolto numa fantasmagoria que o isola do contacto com a vida da gente comum. Por outro lado, ter respostas antes das perguntas, soluções antes dos problemas, favorece o imobilismo. As inevitáveis surpresas serão recebidas como ameaças à boa doutrina. Nanni Moretti tem alguns motivos para dizer que o seu filme é um presente que faz à Igreja. Um presente cheio de humor, sem cedências à vulgaridade.
O mundo das "verdades reveladas" não é um exclusivo do Vaticano. Hoje, no meio dos ruídos sobre o presente e o futuro da UE, decreta-se, com a exibição de números assustadores, que não há alternativas nem correctivos a programas que, em nome de um futuro fictício, tornam o presente insuportável. A insistência em que não há alternativa é uma conhecida retórica para matar qualquer possibilidade de discussão séria e de diálogo profundo e frutuoso. É a linguagem da imposição, de criados obedientes às ordens da especulação financeira e dos seus tutores, das sempre invocadas exigências dos mercados. Os seus interesses são sagrados, intocáveis. Eles são os novos deuses. É preciso conquistar-lhes a confiança. Sacrificar tudo nos seus altares. As agências de rating dizem quem cometeu sacrilégios, quem pecou mortalmente. É preciso confessar-lhe todos os pecados passados, mostrar arrependimento, prometer cumprir a penitência imposta. Depois disso ainda podemos continuar a não passar de lixo.
2. O sonho dos fundadores da UE não era a constituição de um império nem de uma relação de dominadores e dominados. Conseguiram, por isso, 60 anos de paz, de desenvolvimento e de qualidade de vida, como nunca tinha acontecido na Europa. Entrar para a UE era o passaporte para um mundo de possível prosperidade, espantosamente alargado com a queda do Muro de Berlim.
Que aconteceu à União Europeia para que depois de um casamento auspicioso cresçam as vozes anunciando um divórcio ruinoso ou a ameaça de um futuro da União a várias velocidades? A alma da Europa tem de ser a de um por todos e todos por um, implicando tanto os mais fortes como os mais débeis, cada um segundo o seu talento. A relação de dominadores e dominados só pode produzir desconfiança mútua.
Neste momento, duvida-se de tudo e está tudo posto em causa, a começar pelo projecto social europeu. Seria importante corrigir o que deve ser corrigido, mas sem esquecer o que levou anos e anos a construir.
3. Que podem fazer os cristãos por uma Europa que seja de acolhimento dos seus membros e aberta a todos os povos? A concepção cristã da vida pode encarnar-se em qualquer povo e cultura. Em Jesus Cristo são derrubados os muros da separação. Ele não é mais de um povo do que de outro. Lembremos, no entanto, o seguinte: a hierarquia da Igreja tem insistido que, sem as raízes cristãs, a Europa é incompreensível. João Paulo II multiplicou os pedidos de perdão pela infidelidade dos cristãos ao Espírito de Cristo, que nos lembra: não podeis servir a Deus e ao dinheiro.
Espero que nas dioceses de Portugal e em muitos países da Europa surjam iniciativas semelhantes às do bispo de Viseu. Pediu aos padres da sua diocese para repartirem uma fatia do subsídio de Natal em favor do fundo de solidariedade diocesano, esgotado pelo aumento dos pedidos das famílias em dificuldades. Esclareceu que a receita será, de imediato, entregue ao Secretariado Diocesano da Pastoral Social, através da Cáritas Diocesana, contribuindo para que haja Natal nas pessoas e nas famílias da sua diocese. Pede também o contributo financeiro dos restantes cristãos da Igreja viseense.
É uma atitude verdadeiramente eclesial. O bispo aparece com o clero, para darem o exemplo, não para impor, mas para solicitar a participação de toda a Igreja local. De facto, para os cristãos é bispo, com eles é cristão, segundo a boa eclesiologia de St.º Agostinho.
Estes gestos de partilha são fundamentais e insubstituíveis. Brotam do coração perante as urgências imediatas. Não podem, no entanto, substituir o que pertence à acção política, o cuidado do bem comum de todos os cidadãos, seja a nível local, a nível europeu ou global. Muitas vezes, reduzimos a responsabilidade cristã às relações curtas, à caridade entendida como socorro imediato. É um erro. O próprio Pio XII falava de caridade política, do amor que recorre às mediações longas, que tende a influenciar e assumir responsabilidades públicas. A UE deve muito aos sonhos e aos trabalhos de dirigentes cristãos, de mãos dadas com outros dirigentes políticos no pós-guerra. A pergunta que é preciso fazer é esta: e agora?
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