quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Duas visões à procura de um compromisso

Por Teresa de Sousa
(artigo de opinião publicado no jornal Público de 4 de Dezembro de 2011)

A procura de um novo compromisso entre Paris e Berlim volta a estar no cerne do futuro e do destino da Europa

1. Na quinta e na sexta-feira o Presidente da França e a chanceler da Alemanha ofereceram-nos as respectivas visões desta crise, da forma de a superar e o caminho do futuro. Muito diferentes, não tenhamos dúvida. Mas com um ponto de partida comum: a crise abre uma nova fase da integração europeia. Muito diferente da anterior, iniciada em Maastricht quando se tratou de responder à "súbita aceleração da história" desencadeada pela implosão do império soviético e pelo fim da Europa de Ialta. Foram os termos dessa nova Europa que ambos traçaram nas linhas e nas entrelinhas das duas intervenções. Correspondem, como sempre aconteceu na história da integração europeia, a duas visões e duas sensibilidades distintas sobre o futuro da Europa. No passado, os dois países que estão no cerne da integração conseguiram encontrar sempre o compromisso entre essas duas visões. O euro é, precisamente, o resultado desse compromisso. E, porque se tratava precisamente de um compromisso, foi possível aos outros países reverem-se em boa medida nele. 

O desafio que hoje a Europa enfrenta é definir os termos desta nova fase. De uma maneira que resulte de uma negociação em cujo resultado todos, e não apenas a dupla franco-alemã, se possam rever.

Começam aqui os problemas.



2. Durante muito tempo, o compromisso entre Paris e Bona assentou numa ideia muito simples: a França liderava politicamente o projecto europeu; a Alemanha pagava a conta. O contrato durou enquanto havia duas Alemanhas e duas Europas e o mundo estava dependente do equilíbrio da guerra fria. Terminou no dia em que caiu o muro de Berlim e se iniciou o processo imparável da reunificação alemã. O euro nasceu porque o chanceler Helmut Kohl entendia que só poderia haver uma Alemanha unida dentro de uma Europa unida. Abdicar do poderoso marco era a prova exigida pela França para selar um novo acordo europeu. 

A França percebeu que julgava a sua última cartada para preservar o seu papel de liderança política. Mas basta recordar - é hoje conveniente recordar - o debate que rodeou o referendo convocado por François Mitterrand para ratificar Maastricht, em Setembro de 1992, para entender até que ponto antevia a sua perda de influência. O Presidente esteve quase a perdê-lo. O sentimento antigermânico contaminou a campanha. A História estava ainda demasiado presente e o futuro era demasiado incerto. O nascimento do euro e os seus primeiros dez anos de existência feliz provaram que Mitterrand e Kohl tinham razão. O problema de fundo sobre a liderança europeia não ficou resolvido. 

Regressa hoje em força. Em condições europeias e mundiais completamente diferentes. Depois de uma tremenda crise económica e financeira que voltou a "acelerar a História", revelando um mundo no qual o Ocidente deixou de ditar as regras do jogo - económicas e, cada vez mais, políticas. A Europa está de novo confrontada com o desafio de se adaptar às novas circunstâncias geopolíticas que alteram profundamente os dados da sua própria integração. A Alemanha emerge de novo como a potência central, disposta a assumir sem complexos o seu papel de liderança europeia. A França descobre as suas próprias fraquezas e procura controlar os danos. A procura de um novo compromisso entre Paris e Berlim volta a estar no cerne do futuro e do destino da Europa. 


3. Altura para voltar aos dois discursos de Sarkozy e de Merkel e ao esboço de compromisso que vai ter de ser negociado até ao final desta semana. O Presidente da França cedeu no essencial: a "Europa da estabilidade" que a chanceler exige e que quer dizer exactamente a perda de soberania orçamental dos países da zona euro e pesadas sanções políticas para quem infrinja as novas regras do jogo. Tudo inscrito nos tratados e sujeito a recurso para o Tribunal do Luxemburgo. De resto, para a chanceler, a resolução da crise será uma longa e penosa cura de austeridade (uma maratona) que um dia levará à convergência económica da zona euro, de acordo com o modelo alemão. Merkel aceita implicitamente uma intervenção limitada do BCE em caso de emergência financeira. Não aceita nada que alivie a pressão sobre os Governos dos países em extrema dificuldade nem a co-responsabilização pela dívida soberana dos países-membros (ou talvez a aceite ao quilómetro 42 e para quem, entretanto, não morreu no caminho). Chega para salvar o euro? Ninguém sabe. 

Nicolas Sarkozy aceita o início de um novo "ciclo de desendividamento", ou seja, de austeridade e reformas. Não pode ceder sem luta na soberania orçamental da França. Como ele próprio explica, os dois países têm duas culturas políticas muito diferentes. Segundo a boa tradição gaullista, qualquer reforma dos tratados tem de colocar nas mãos dos Estados (e não das instituições europeias) o controlo da "união orçamental". É a velha tese de Jacques Chirac sobre uma "vanguarda" do euro, organizada fora dos tratados e das instituições europeias. Por isso, Sarkozy quer um novo tratado a 17, negociado a 17, enquanto Merkel entende que esta é apenas a "segunda melhor solução" A primeira é uma revisão dos tratados aceite pelos 27. Qualquer reforma passará por um compromisso entre estas duas visões tradicionais dos dois países. Mas é aqui que os outros deixam de ser figurantes e têm uma palavra a dizer. De Portugal à Itália. 


4. O Presidente francês tentou apaziguar as reacções internas, cobrindo a fraqueza da França com a importância história da relação franco-alemã e com a salvação da Europa. As reacções não se fizeram esperar e são perigosas. O velho antigermanismo que contaminou o debate de Maastricht está a ressurgir em força. E não está limitado às franjas nacionalistas, à direita e à esquerda - atravessa o Partido Socialista. Manifestou-se de forma virulenta na reacção ao discurso de Toulon. Arnauld Montbourg, o muito popular líder da ala esquerda do PS, compara Merkel a Bismark e Sarkozy a Daladier. Outras facções socialistas limitam-se a explorar a "fraqueza" do Presidente diante da chanceler. Mas o vírus ameaça transformar-se numa arma eleitoral. Nada seria pior. 

Por alguma razão Angela Merkel sentiu necessidade de dedicar parte do seu discurso no Bundestag a afastar a ideia de que a Alemanha está a impor o seu diktat aos parceiros europeus. Não chegam as palavras. A sua surda intransigência na resolução da crise do euro, somada a uma confrangedora falta de visão, têm contribuído muito para alimentar um sentimento antialemão que se propaga muito além da França. Frank-Walter Steinmeir, líder parlamentar do SPD e vice-chanceler da anterior coligação da CDU da chanceler com os sociais-democratas, denunciou-a no Bundestag, acusando Merkel de estar a alienar "até os nossos vizinhos mais próximos". 

A Alemanha está a dividir a Europa em vez de conseguir uni-la. E isto também é perigoso. 

Sarkozy fala de urgência, de solidariedade e de Europa, mas tem actuado sobretudo para salvaguardar os interesses da França. Merkel não percebe o risco de separar o interesse alemão do interesse europeu e deixou isolar a Alemanha. Ambos conseguiram desacreditar a aliança franco-alemã, quando ela era tão indispensável como sempre foi. 


5. A Europa tem cinco dias para encontrar um acordo que consiga acalmar os mercados, abrir as portas para uma negociação dos tratados e oferecer aos europeus, incluindo aqueles que estão hoje a sofrer as penas da austeridade, uma perspectiva de futuro. Há um debate que falta fazer sobre o modelo europeu e que vai exigir decisões políticas muito difíceis. Felipe González resumiu-o logo no início da crise financeira mais ou menos por estas palavras: o Ocidente passou os últimos 30 anos a gastar e os outros a poupar; chegou o momento de ter de fazer o contrário. Esta é uma verdade inquestionável que não dispensa uma outra: o endividamento europeu apenas se tornará sustentável quando a Europa conseguir regressar ao crescimento. É aqui que a Alemanha não tem qualquer pensamento ou que a França só vê o caminho do proteccionismo contra a globalização. É aqui que falta também um novo consenso sem o qual as reformas legais e as "uniões orçamentais" podem ter a vida curta. 

Ninguém sabe se a Europa conseguirá um acordo suficientemente claro e ambicioso no final da semana para poder respirar fundo. Há uma panóplia de possibilidades que ainda podem desencadear uma catástrofe. O Financial Times enumerava algumas. Um grande banco que vá à falência, uma corrida aos depósitos num qualquer país, uma escalada nos juros da dívida soberana. E um enorme descrédito na capacidade dos líderes europeus de se erguerem à altura da situação. Mas já é bom que se parta das diferenças entre Paris e Berlim em vez de se fingir um entendimento que nunca existiu.

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