sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

A primeira civilização ateia

Artigo de Jorge Almeida Fernandes, publicado no jornal Público de 24 de Dezembro:

Declarou Vaclav Havel em Setembro de 1994 num discurso na Universidade de Stanford: "O papel do intelectual é, entre outras coisas, antever, como Cassandra, as variadas ameaças, horrores e catástrofes. O papel do político é escutar as vozes de aviso, tomar nota dos perigos e, ao mesmo tempo, pensar intensamente no modo de os afrontar ou prevenir."

Havel acaba de ser homenageado pelo seu papel histórico, pelo combate pela liberdade e pela verdade, como cidadão europeu ou como teórico do "pós-totalitarismo". Foi um dos grandes pensadores políticos da segunda metade do século XX. Tem, no entanto, muitas vidas e vozes - do dramaturgo ao boémio, do político ao profeta. Tentou, ao longo de décadas, deixar-nos um aviso: não tomem nada como automaticamente garantido, pois a nossa civilização corre o risco de catástrofe. É o trabalho de Cassandra, o mais silenciado e o que aqui nos interessa.

Em Outubro de 2010, Vaclav Havel surpreendeu alguns jornalistas no discurso de abertura da 14ª Conferência do Forum 2000 em Praga: "Estamos a viver na primeira civilização global." Ela tem inúmeras vantagens e um grande inconveniente: cada perigo que nasce num ponto do mundo pode tornar-se numa ameaça global.

O escândalo vem na passagem seguinte: "Mas também vivemos na primeira civilização ateia, por outras palavras, numa civilização que perdeu a conexão com o infinito e a eternidade." Apontava-lhe dois efeitos. Primeiro, a preferência pelo ganho a curto prazo. "O que é importante é que um investimento seja rentável em dez ou 15 anos: o modo como afectará as vidas dos nossos descendentes dentro de cem anos é menos importante."

Segundo: o "orgulho", aquilo que os gregos denominavam por hubris, a "ideia arrogante de que conhecemos tudo e que aquilo que ignoramos depressa o descobriremos, porque vamos saber tudo". É a convicção de que o progresso da ciência, da tecnologia e do conhecimento racional em geral "induzem crescimento, mais crescimento e ainda mais crescimento, a começar pela dimensão das aglomerações" - o tema da conferência era a globalização, a urbanização e o planeta.

"Nós esquecemos o que as anteriores civilizações sabiam: nada é evidente por si mesmo. Penso que a recente crise financeira e económica é de extrema importância e constitui, na sua essência, um eloquente sinal para o mundo contemporâneo." Colheu-nos de surpresa. "É um aviso contra a desproporcionada autoconfiança e o orgulho da civilização moderna. (...) O comportamento humano não é totalmente explicável como muitos inventores de teorias e conceitos económicos acreditam. (...) Vejo a recente crise como um pequeno apelo à humildade. Como um pequeno desafio para que não tomemos nada como automaticamente garantido."

Havel suspeita que "a nossa civilização caminha para a catástrofe", a menos que corrija "a sua miopia e a sua estúpida convicção de omnisciência, o seu desmesurado orgulho".

Esta intervenção não encerra novidade, é um tema recorrente em Havel. "A minha principal preocupação não é o terrorismo", declarou em 2007 ao Nouvel Observateur. "É a dinâmica suicidária da evolução da nossa civilização planetária. É como se estivesse obstinada em perseguir objectivos de curto prazo, quando a sorte do planeta exige um mais agudo e voluntário sentido de antecipação."

"Pela primeira vez na História, assistimos ao desenvolvimento desenfreado de uma civilização deliberadamente ateia. Deve alarmar-nos. Quanto a mim, sou apenas meio crente, pois não adiro completamente nem a um único deus, nem a uma religião revelada. Tenho, no entanto, a certeza de que tudo no mundo não é apenas efeito do acaso. Estou convencido de que há um ser, uma força velada por um manto de mistério. E é o mistério que me fascina." Havel não propõe nem a conversão religiosa, nem o misticismo, sublinha a espiritualidade e a necessidade do sentido de transcendência: "A transcendência é a única alternativa real à extinção."

Preveniu no mesmo discurso de Stanford: "Sei que, ao dizer estas coisas, corro o risco de que um exército de cientistas e jornalistas me ponham o rótulo de místico que espalha opiniões obscurantistas. (...) O risco do ridículo é, no entanto, razão insuficiente para guardar silêncio sobre aquilo que considero ser verdadeiro."

É uma linha de pensamento que se filia no próprio passado de combate pela liberdade e pela verdade na Europa de Leste. Escrevia em 1984: "O maior erro que a Europa Ocidental poderia cometer seria não compreender os regimes pós-totalitários tal como eles são em última análise, isto é, um espelho deformador da civilização moderna no seu todo." A derrota do comunismo não resolveria por si a "doença" da civilização ocidental.

Sublinhava noutra entrevista de 2007: "O Ocidente democrático perdeu a capacidade de proteger e cultivar os valores que não cessa de reclamar como seus. (...) O pragmatismo dos políticos que querem ganhar eleições futuras, reconhecendo como suprema autoridade a vontade e os humores duma caprichosa sociedade de consumo, impede esses mesmos políticos de assumirem a dimensão moral, metafísica e trágica da sua própria linha de acção. (...) Uma nova divindade tende a suplantar o respeito pelo horizonte metafísico da vida humana: o ideal de uma produção e de um consumo incessantemente crescentes."

Havel falou muito de "antipolítica". O politólogo Jacques Rupnik, seu antigo conselheiro, anotou há dias no Monde: "A "antipolítica" remete para um défice de legitimidade da política. A política deve legitimar-se através de qualquer coisa que a transcenda, como valores éticos e espirituais. A dissidência [anticomunista] não tinha por ambição conquistar o poder e rejeitava a política como tecnologia do poder."

Este resumo da "profecia" de Havel é inevitavelmente redutor. O actual momento de crise, a generalização da insegurança, os conflitos no horizonte - e a experiência dos limites do "orgulho"- justificam a evocação de uma outra profecia feita em 1994: "Dada a sua fatal incorrigibilidade, a Humanidade terá provavelmente de atravessar muitos outros Ruanda e muitos outros Tchernobil antes de compreender quão incrivelmente míope pode ser um ser humano ao esquecer que não é Deus."

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

"O Rapto de Europa"

"O Rapto de Europa", de Nadir Afonso, na 1ª página do Diário de Notícias de hoje.

Europa era filha de Agenor, rei da Fenícia, e de Telefaassa. Zeus, metamorfoseado em touro, aproximou-se de Europa. Esta sentou-se sobre o seu dorso e deixou que ele a conduzisse, suave e vagarosamente, sobre a crista do mar. Quando se apercebeu, viu-se transportada a galope sobre as ondas. Chegados a Creta, Zeus consumou o seu amor por Europa. Dessa união nasceram três filhos: Minos (futuro rei de Creta), Radamanto e Sarpédon.


terça-feira, 27 de dezembro de 2011

O mau gosto americano

O bloco sanitário da cela ocupada por Saddam Hussein foi arrancada e transportada para os Estados Unidos, para vir a ser exibida num museu.
A notícia na CNN pode ser vista e ouvida aqui.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Estas guerras ditas humanitárias: Iraque

A onda de explosões que assolou hoje a capital iraquiana fez pelo menos 57 mortos e mais de 200 feridos, indicam responsáveis da área da saúde de Bagdade.
Notícia publicada no site do Expresso pode ser lida aqui.

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Nós, as "gorduras"

Artigo de opinião de Manuel António Pina, publicado no Jornal de Notícias:
Primeiro foram os jovens desempregados a receber do secretário de Estado da Juventude guia de marcha para fora de Portugal; agora coube a vez aos professores, pela voz do próprio primeiro-ministro.
No caso dos professores, a coisa passa-se assim: o ministro Crato varre-os das escolas; depois, Passos Coelho aponta-lhes a porta de saída do país: emigrem, porque Angola e Brasil "têm uma grande necessidade (...) de mão-de-obra qualificada". Portugal (que é um dos países da Europa com mais baixos níveis de escolarização, segundo o Relatório do Desenvolvimento Humano de 2011, divulgado no mês passado pelo PNUD) não tem, como se sabe, necessidade de mão-de-obra qualificada.
E, como muito menos tem necessidade de mão-de-obra "desqualificada", ninguém se surpreenda se um dia destes vir o secretário de Estado do Emprego e o novo presidente do Instituto do Emprego e Formação (?) Profissional a mandar embora quem tiver como habilitações só o ensino básico; o ministro da Segurança Social a pôr na rua pensionistas e idosos (para que precisa Portugal de pensionistas e idosos, que apenas dão despesa?); o ministro da Saúde a dizer aos doentes que vão morrer longe, em países sem listas de espera e com taxas moderadoras em conta; o da Defesa a aconselhar os militares a desertar e ir para sítios onde haja guerras; e por aí adiante...
Percebe-se finalmente o que são as tais "gorduras do Estado": são os portugueses.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Como seria o mundo, hoje?

Cartoon de Chappatte, publicado no International Herald Tribune.

sábado, 17 de dezembro de 2011

Quase uma notícia

Artigo de opinião de António Manuel Pina, publicado no JN de ontem:
Conta a Lusa que "o Tribunal da Relação de Coimbra condenou os proprietários de uma loja de Aveiro a pagar 6.500 euros a uma trabalhadora [na realidade ter-se-á tratado de uma coima] que obrigou a cumprir o horário laboral sentada virada para a parede e sem nada fazer".
A notícia adianta que a trabalhadora fora transferida para essa loja, a 70 quilómetros do seu anterior lugar de trabalho, sem precedência de qualquer processo disciplinar e que o acórdão concluiu que a gerência da loja colocou a trabalhadora na situação referida "com a intenção, declarada, de não lhe atribuir quaisquer funções", criando-lhe assim um "ambiente hostil e humilhante".
A notícia é, de facto, duas notícias: a da condenação da empresa e a do seu inqualificável comportamento, pormenorizadamente descrito. E igualmente uma quase-notícia: o nome da empresa (o "Quem?" da teoria clássica do jornalismo) é pudicamente omitido.
Talvez, quem sabe?, nem loja nem empresa tenham nome, ou talvez o seu nome não conste do acórdão "a que a Lusa hoje teve acesso". Ficam, pois, todos os "proprietário[s] de loja[s]" de Aveiro sob suspeita de assédio no local de trabalho. Ou talvez nem todos. Atrevo-me a admitir (mas eu sou um cínico) que a loja em questão não seja de ciganos, cabo-verdianos, paquistaneses ou chineses, casos em que o jornalismo (e não me refiro particularmente ao da Lusa) costuma ser menos pudico no que toca ao "Quem".

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

A guerra do Iraque

O governo dos Estados Unidos anunciou nesta quinta-feira o encerramento formal da Guerra do Iraque, com a retirada dos últimos soldados do país e o final das operações que duraram quase nove anos e custaram milhares de vidas.
"A guerra do Iraque foi ilegítima. Foi uma conspiração imoral e criminosa. Não houve qualquer provocação, qualquer ligação à Al Qaeda, nem armas do Armagedão. As historietas de cumplicidade entre Saddam e Osama foram pura merda em self- service. Foi uma velha guerra colonial pelo petróleo, disfraçada em cruzada a favor da vida e da liberdade ocidentais, desencadeada por uma clique sedenta de guerra, formada por fantasistas geopolíticos judeo-cristãos, que ocuparam os meios de comunicação e exploraram a psicopatia norte-americana do 11 de Setembro." John Le Carré, Amigos até ao Fim.

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Eleições na República Democrática do Congo (ex-Zaire), capital Kinshasa

Desenho de Glez, Burkina Faso (publicado no site do Courrier International)
Tradução do texto do desenho: Demon - Demónio
- De que horrível flagelo está a fugir?
- A Democracia ...
Brazzaville (capital da República do Congo) e Kinshasa ficam muito próximas.

Como resultado de um escrutínio marcado por irregularidades, o presidente cessante Joseph Kabila foi proclamado vencedor das presidenciais (48,95 %). O seu opositor Etienne Tshisekedi (32,33 %) respondeu autoproclamando-se também presidente. Notícia do Courrier International, intitulada "E agora: evitar a guerra", aqui.

domingo, 11 de dezembro de 2011

O Reino Unido não está solidário com a Europa

Desenho de Peter Schrank, publicado no "The Economist"

sábado, 10 de dezembro de 2011

Centro Carlos Santamaría


Centro Carlos Santamaría - Biblioteca y Centro de Documentación da Universidade do País Basco, em San Sebastián. Projecto do Arquitecto Ander Marquet Rya e da Arquitecta Técnica Juncal Aldamizechevarría González de Durana, ambos da Sociedade de Arquitectura JAAM.


quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

A indústria financeira britânica

Declarações de David Cameron:

«Quando for a Bruxelas, vou lá estar para defender e promover os interesses do Reino Unido. E, neste momento, esses interesses passam pela resolução dos problemas da Zona Euro que têm tido efeitos nefastos sobre a nossa economia».

E, prosseguiu, «isto significa obviamente que os países da Zona Euro têm de agir em conjunto. E se escolherem usar o tratado europeu para isso é óbvio que haverá salvaguardas e interesses britânicos nos quais vou insistir».

Fica então o aviso: «Eu não assinarei um tratado que não garanta essas salvaguardas, como a importância do mercado único ou o funcionamento dos serviços financeiros».

Notícia completa do site Agência Financeira aqui.

Segundo o "El País":
"Ante las insistentes amenazas del primer ministro británico, David Cameron, de vetar un acuerdo a 27 si no conseguía más poderes para proteger su industria financiera, la canciller alemana Angela Merkel casi descartó la posibilidad de llegar a un acuerdo a 27."

Os principais inimigos da Europa estão dentro da Europa.

Entre mortos e vivos

Excertos do artigo da autoria de Inês Pedrosa publicado na revista Ler de Dezembro de 2011.

“Safo-me razoavelmente bem do ritual de humilhação colectiva agora vigente em Portugal a que parece ser moda chamar “realidade”. Temo a loucura normal, feita de habituação ao infortúnio, acatamento e lobotomia. Vejo muita gente encolhida, escravizada ao discurso do dinheiro, encharcada em álcool, comprimidos ou trabalho (o trabalho transforma-se em droga dura) para não pensar que a vida é demasiado breve para ser a merda que nos querem fazer crer que ela é.* Os moralistas do papel almaço ressuscitam um salazarismo em versão Armani e ensinam aos filhos que o importante é a esperteza de serem ricos.”

“Portugal é demasiado velho para se tornar um puto neoliberal carregado do pestilento acne do individualismo triunfante. Já nem na América se usa este ambiente de bordel sem luxúria.”

“No livro da Tatiana**, a paixão acontece de repente e muda passado e futuro num sopro. É de facto assim mas poucos são capazes de ver. Atordoam-se. Organizam-se. Despedaçam-se no escuro. A luz assusta – poucos a distinguem, no carrossel dos néones. “O lume que acendia enchia a sua casa de fumo, não a iluminava de luz”, escreve Abelardo na História Calamitatum que é o relato, na primeira pessoa da sua vida. O amor por Heloísa perdeu-o e salvou-o, isto é, permitiu-lhe perceber a diferença entre as variedades da luz e do lume. E nada mais há para perceber nesta vida.”

* Sublinhado meu

** Dois Rios de Tatiana Salem Levy


Duas visões à procura de um compromisso

Por Teresa de Sousa
(artigo de opinião publicado no jornal Público de 4 de Dezembro de 2011)

A procura de um novo compromisso entre Paris e Berlim volta a estar no cerne do futuro e do destino da Europa

1. Na quinta e na sexta-feira o Presidente da França e a chanceler da Alemanha ofereceram-nos as respectivas visões desta crise, da forma de a superar e o caminho do futuro. Muito diferentes, não tenhamos dúvida. Mas com um ponto de partida comum: a crise abre uma nova fase da integração europeia. Muito diferente da anterior, iniciada em Maastricht quando se tratou de responder à "súbita aceleração da história" desencadeada pela implosão do império soviético e pelo fim da Europa de Ialta. Foram os termos dessa nova Europa que ambos traçaram nas linhas e nas entrelinhas das duas intervenções. Correspondem, como sempre aconteceu na história da integração europeia, a duas visões e duas sensibilidades distintas sobre o futuro da Europa. No passado, os dois países que estão no cerne da integração conseguiram encontrar sempre o compromisso entre essas duas visões. O euro é, precisamente, o resultado desse compromisso. E, porque se tratava precisamente de um compromisso, foi possível aos outros países reverem-se em boa medida nele. 

O desafio que hoje a Europa enfrenta é definir os termos desta nova fase. De uma maneira que resulte de uma negociação em cujo resultado todos, e não apenas a dupla franco-alemã, se possam rever.

Começam aqui os problemas.



2. Durante muito tempo, o compromisso entre Paris e Bona assentou numa ideia muito simples: a França liderava politicamente o projecto europeu; a Alemanha pagava a conta. O contrato durou enquanto havia duas Alemanhas e duas Europas e o mundo estava dependente do equilíbrio da guerra fria. Terminou no dia em que caiu o muro de Berlim e se iniciou o processo imparável da reunificação alemã. O euro nasceu porque o chanceler Helmut Kohl entendia que só poderia haver uma Alemanha unida dentro de uma Europa unida. Abdicar do poderoso marco era a prova exigida pela França para selar um novo acordo europeu. 

A França percebeu que julgava a sua última cartada para preservar o seu papel de liderança política. Mas basta recordar - é hoje conveniente recordar - o debate que rodeou o referendo convocado por François Mitterrand para ratificar Maastricht, em Setembro de 1992, para entender até que ponto antevia a sua perda de influência. O Presidente esteve quase a perdê-lo. O sentimento antigermânico contaminou a campanha. A História estava ainda demasiado presente e o futuro era demasiado incerto. O nascimento do euro e os seus primeiros dez anos de existência feliz provaram que Mitterrand e Kohl tinham razão. O problema de fundo sobre a liderança europeia não ficou resolvido. 

Regressa hoje em força. Em condições europeias e mundiais completamente diferentes. Depois de uma tremenda crise económica e financeira que voltou a "acelerar a História", revelando um mundo no qual o Ocidente deixou de ditar as regras do jogo - económicas e, cada vez mais, políticas. A Europa está de novo confrontada com o desafio de se adaptar às novas circunstâncias geopolíticas que alteram profundamente os dados da sua própria integração. A Alemanha emerge de novo como a potência central, disposta a assumir sem complexos o seu papel de liderança europeia. A França descobre as suas próprias fraquezas e procura controlar os danos. A procura de um novo compromisso entre Paris e Berlim volta a estar no cerne do futuro e do destino da Europa. 


3. Altura para voltar aos dois discursos de Sarkozy e de Merkel e ao esboço de compromisso que vai ter de ser negociado até ao final desta semana. O Presidente da França cedeu no essencial: a "Europa da estabilidade" que a chanceler exige e que quer dizer exactamente a perda de soberania orçamental dos países da zona euro e pesadas sanções políticas para quem infrinja as novas regras do jogo. Tudo inscrito nos tratados e sujeito a recurso para o Tribunal do Luxemburgo. De resto, para a chanceler, a resolução da crise será uma longa e penosa cura de austeridade (uma maratona) que um dia levará à convergência económica da zona euro, de acordo com o modelo alemão. Merkel aceita implicitamente uma intervenção limitada do BCE em caso de emergência financeira. Não aceita nada que alivie a pressão sobre os Governos dos países em extrema dificuldade nem a co-responsabilização pela dívida soberana dos países-membros (ou talvez a aceite ao quilómetro 42 e para quem, entretanto, não morreu no caminho). Chega para salvar o euro? Ninguém sabe. 

Nicolas Sarkozy aceita o início de um novo "ciclo de desendividamento", ou seja, de austeridade e reformas. Não pode ceder sem luta na soberania orçamental da França. Como ele próprio explica, os dois países têm duas culturas políticas muito diferentes. Segundo a boa tradição gaullista, qualquer reforma dos tratados tem de colocar nas mãos dos Estados (e não das instituições europeias) o controlo da "união orçamental". É a velha tese de Jacques Chirac sobre uma "vanguarda" do euro, organizada fora dos tratados e das instituições europeias. Por isso, Sarkozy quer um novo tratado a 17, negociado a 17, enquanto Merkel entende que esta é apenas a "segunda melhor solução" A primeira é uma revisão dos tratados aceite pelos 27. Qualquer reforma passará por um compromisso entre estas duas visões tradicionais dos dois países. Mas é aqui que os outros deixam de ser figurantes e têm uma palavra a dizer. De Portugal à Itália. 


4. O Presidente francês tentou apaziguar as reacções internas, cobrindo a fraqueza da França com a importância história da relação franco-alemã e com a salvação da Europa. As reacções não se fizeram esperar e são perigosas. O velho antigermanismo que contaminou o debate de Maastricht está a ressurgir em força. E não está limitado às franjas nacionalistas, à direita e à esquerda - atravessa o Partido Socialista. Manifestou-se de forma virulenta na reacção ao discurso de Toulon. Arnauld Montbourg, o muito popular líder da ala esquerda do PS, compara Merkel a Bismark e Sarkozy a Daladier. Outras facções socialistas limitam-se a explorar a "fraqueza" do Presidente diante da chanceler. Mas o vírus ameaça transformar-se numa arma eleitoral. Nada seria pior. 

Por alguma razão Angela Merkel sentiu necessidade de dedicar parte do seu discurso no Bundestag a afastar a ideia de que a Alemanha está a impor o seu diktat aos parceiros europeus. Não chegam as palavras. A sua surda intransigência na resolução da crise do euro, somada a uma confrangedora falta de visão, têm contribuído muito para alimentar um sentimento antialemão que se propaga muito além da França. Frank-Walter Steinmeir, líder parlamentar do SPD e vice-chanceler da anterior coligação da CDU da chanceler com os sociais-democratas, denunciou-a no Bundestag, acusando Merkel de estar a alienar "até os nossos vizinhos mais próximos". 

A Alemanha está a dividir a Europa em vez de conseguir uni-la. E isto também é perigoso. 

Sarkozy fala de urgência, de solidariedade e de Europa, mas tem actuado sobretudo para salvaguardar os interesses da França. Merkel não percebe o risco de separar o interesse alemão do interesse europeu e deixou isolar a Alemanha. Ambos conseguiram desacreditar a aliança franco-alemã, quando ela era tão indispensável como sempre foi. 


5. A Europa tem cinco dias para encontrar um acordo que consiga acalmar os mercados, abrir as portas para uma negociação dos tratados e oferecer aos europeus, incluindo aqueles que estão hoje a sofrer as penas da austeridade, uma perspectiva de futuro. Há um debate que falta fazer sobre o modelo europeu e que vai exigir decisões políticas muito difíceis. Felipe González resumiu-o logo no início da crise financeira mais ou menos por estas palavras: o Ocidente passou os últimos 30 anos a gastar e os outros a poupar; chegou o momento de ter de fazer o contrário. Esta é uma verdade inquestionável que não dispensa uma outra: o endividamento europeu apenas se tornará sustentável quando a Europa conseguir regressar ao crescimento. É aqui que a Alemanha não tem qualquer pensamento ou que a França só vê o caminho do proteccionismo contra a globalização. É aqui que falta também um novo consenso sem o qual as reformas legais e as "uniões orçamentais" podem ter a vida curta. 

Ninguém sabe se a Europa conseguirá um acordo suficientemente claro e ambicioso no final da semana para poder respirar fundo. Há uma panóplia de possibilidades que ainda podem desencadear uma catástrofe. O Financial Times enumerava algumas. Um grande banco que vá à falência, uma corrida aos depósitos num qualquer país, uma escalada nos juros da dívida soberana. E um enorme descrédito na capacidade dos líderes europeus de se erguerem à altura da situação. Mas já é bom que se parta das diferenças entre Paris e Berlim em vez de se fingir um entendimento que nunca existiu.

Idolatria do dinheiro e espírito cristão

Por Frei Bento Domingues
(artigo de opinião publicado no jornal Público de 4 de Dezembro de 2011)

O sonho dos fundadores da UE não era a constituição de um império, nem de uma relação de dominadores e dominados

1. Ninguém pode viver só com dúvidas. Bastam as que favorecem o espírito crítico, vigilante perante a propaganda e as pseudo-evidências. As certezas, para serem saudáveis, precisam de abrigar interrogações que as não deixem estabelecer-se como definitivas e irreformáveis.

 Isto nada tem a ver com o relativismo como sistema. É apenas o reconhecimento da condição humana, limitada, falível, atraída pelo Absoluto. Quando no filme de Nanni Moretti Habemus Papam, o eleito dos cardeais, assaltado pela dúvida, foge aos que o desejam aclamar na Praça de S. Pedro, o cineasta humanizou o papel do Papa envolto numa fantasmagoria que o isola do contacto com a vida da gente comum. Por outro lado, ter respostas antes das perguntas, soluções antes dos problemas, favorece o imobilismo. As inevitáveis surpresas serão recebidas como ameaças à boa doutrina. Nanni Moretti tem alguns motivos para dizer que o seu filme é um presente que faz à Igreja. Um presente cheio de humor, sem cedências à vulgaridade. 

O mundo das "verdades reveladas" não é um exclusivo do Vaticano. Hoje, no meio dos ruídos sobre o presente e o futuro da UE, decreta-se, com a exibição de números assustadores, que não há alternativas nem correctivos a programas que, em nome de um futuro fictício, tornam o presente insuportável. A insistência em que não há alternativa é uma conhecida retórica para matar qualquer possibilidade de discussão séria e de diálogo profundo e frutuoso. É a linguagem da imposição, de criados obedientes às ordens da especulação financeira e dos seus tutores, das sempre invocadas exigências dos mercados. Os seus interesses são sagrados, intocáveis. Eles são os novos deuses. É preciso conquistar-lhes a confiança. Sacrificar tudo nos seus altares. As agências de rating dizem quem cometeu sacrilégios, quem pecou mortalmente. É preciso confessar-lhe todos os pecados passados, mostrar arrependimento, prometer cumprir a penitência imposta. Depois disso ainda podemos continuar a não passar de lixo.


2. O sonho dos fundadores da UE não era a constituição de um império nem de uma relação de dominadores e dominados. Conseguiram, por isso, 60 anos de paz, de desenvolvimento e de qualidade de vida, como nunca tinha acontecido na Europa. Entrar para a UE era o passaporte para um mundo de possível prosperidade, espantosamente alargado com a queda do Muro de Berlim.

 Que aconteceu à União Europeia para que depois de um casamento auspicioso cresçam as vozes anunciando um divórcio ruinoso ou a ameaça de um futuro da União a várias velocidades? A alma da Europa tem de ser a de um por todos e todos por um, implicando tanto os mais fortes como os mais débeis, cada um segundo o seu talento. A relação de dominadores e dominados só pode produzir desconfiança mútua.

 Neste momento, duvida-se de tudo e está tudo posto em causa, a começar pelo projecto social europeu. Seria importante corrigir o que deve ser corrigido, mas sem esquecer o que levou anos e anos a construir.


3. Que podem fazer os cristãos por uma Europa que seja de acolhimento dos seus membros e aberta a todos os povos? A concepção cristã da vida pode encarnar-se em qualquer povo e cultura. Em Jesus Cristo são derrubados os muros da separação. Ele não é mais de um povo do que de outro. Lembremos, no entanto, o seguinte: a hierarquia da Igreja tem insistido que, sem as raízes cristãs, a Europa é incompreensível. João Paulo II multiplicou os pedidos de perdão pela infidelidade dos cristãos ao Espírito de Cristo, que nos lembra: não podeis servir a Deus e ao dinheiro.

 Espero que nas dioceses de Portugal e em muitos países da Europa surjam iniciativas semelhantes às do bispo de Viseu. Pediu aos padres da sua diocese para repartirem uma fatia do subsídio de Natal em favor do fundo de solidariedade diocesano, esgotado pelo aumento dos pedidos das famílias em dificuldades. Esclareceu que a receita será, de imediato, entregue ao Secretariado Diocesano da Pastoral Social, através da Cáritas Diocesana, contribuindo para que haja Natal nas pessoas e nas famílias da sua diocese. Pede também o contributo financeiro dos restantes cristãos da Igreja viseense.

 É uma atitude verdadeiramente eclesial. O bispo aparece com o clero, para darem o exemplo, não para impor, mas para solicitar a participação de toda a Igreja local. De facto, para os cristãos é bispo, com eles é cristão, segundo a boa eclesiologia de St.º Agostinho. 

Estes gestos de partilha são fundamentais e insubstituíveis. Brotam do coração perante as urgências imediatas. Não podem, no entanto, substituir o que pertence à acção política, o cuidado do bem comum de todos os cidadãos, seja a nível local, a nível europeu ou global. Muitas vezes, reduzimos a responsabilidade cristã às relações curtas, à caridade entendida como socorro imediato. É um erro. O próprio Pio XII falava de caridade política, do amor que recorre às mediações longas, que tende a influenciar e assumir responsabilidades públicas. A UE deve muito aos sonhos e aos trabalhos de dirigentes cristãos, de mãos dadas com outros dirigentes políticos no pós-guerra. A pergunta que é preciso fazer é esta: e agora?

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Rússia e China pedem ao Irão acesso ao avião americano derrubado

Notícia no jornal peruano La Republica:

"Rusia y China han pedido autorización a Irán para inspeccionar el avión espía no tripulado RQ-170 "Sentinel" de EEUU que se encuentra en poder del país musulmán, informó la agencia iraní Mehr, que cita una fuente militar que no identifica.
La agencia también señala: "Según informaciones no confirmadas, Irán podría exponer públicamente el avión no tripulado", considerado uno de los más avanzados producidos por EEUU y dedicado a labores de observación, espionaje y operaciones electrónicas.
El pasado domingo, Irán anunció el derribo de un avión estadounidense de reconocimiento no tripulado en la zona oriental del país, del modelo RQ 170 "Sentinel", que había violado el espacio aéreo iraní.
Fuentes militares dijeron que, tras su derribo, el aparato no sufrió graves daños y quedó en manos de las Fuerzas Armadas de Irán.
Medios internacionales señalaron posteriormente que EEUU y la OTAN habían admitido la pérdida de uno de estos aviones no tripulados en el oeste de Afganistán, en la zona fronteriza con Irán, y que Washington estaba preocupado por que su tecnología fuese obtenida por los iraníes y otros países."

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Christina Rossetti

Christina Rossetti fotografada por Lewis Carroll

A BIRTHDAY, de Christina Rossetti (1830-1894)

My heart is like a singing bird
Whose nest is in a water'd shoot;
My heart is like an apple-tree
Whose boughs are bent with thick-set fruit;
My heart is like a rainbow shell
That paddles in a halcyon sea;
My heart is gladder than all these,
Because my love is come to me.

Raise me a daïs of silk and down;
Hang it with vair and purple dyes;
Carve it in doves and pomegranates,
And peacocks with a hundred eyes;
Work it in gold and silver grapes,
In leaves and silver fleurs-de-lys;
Because the birthday of my life
Is come, my love is come to me.

O poema pode ser ouvido
aqui, lido por Stella Gonet.

O poema traduzido por Margarida Vale de Gato:

UM ANIVERSÁRIO

Meu coração é um pássaro cantante
Cujo ninho é um rebento orvalhado;
Meu coração é uma macieira
Vergando o tronco de frutos pesado;
Meu coração é um búzio irisado
Vogando na corrente com langor;
Meu coração mais que tudo se alegra
Porque a meus braços chegou meu amor.

Dai-me um dossel tingido de cor roxa;
De seda debruada de mil folhos;
Bordai nele romãs, pombos alados,
Pavões com caudas de mais de cem olhos;
Ornai-o de uvas, de rubis e prata,
Folhas douradas, pomares em flor;
Porque hoje é dia que nasce m'nha vida,
Hoje a meus braços chegou meu amor
.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Manuel de Arriaga

"Hei-de morrer pobre, hei-de morrer tão descrente dos homens quão crente nos princípios que sigo; hei-de morrer vencido e cansado, mas hei-de ter a consolação de que por cima da minha sepultura pode dizer-se:
"Aqui jaz um homem que não explorou ninguém e que antes por alguns foi explorado""
Manuel de Arriaga, A questão do Lunda, 1891
(sublinhado meu)

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Estas guerras ditas humanitárias

Tout commence souvent par des images : une femme qui fuit un bombardement en emportant un bébé dans ses bras, des cadavres étalés devant les caméras de télévision, le visage d’un dictateur qui menace. Viennent ensuite les mots entrelardés de chiffres alarmistes : dans la bouche des intellectuels ou sous la plume des éditorialistes, ils exhortent la « communauté internationale » à agir pour « éviter l’irréparable ». Une guerre de propagande obscurcit alors le dialogue diplomatique, tandis que monte la pression de l’urgence, l’appel des uns à éliminer un « nouvel Hitler » (Saddam Hussein, Slobodan Milosevic, Mouammar Kadhafi...) répondant à la dénonciation de l’impérialisme des grandes puissances par les autres.

Parfois, les crimes dénoncés sont réels, parfois exagérés ou carrément imaginaires. Souvent, ils ne constituent que des prétextes dans le jeu des puissances qui s’abritent derrière les organisations internationales. Les pays dominants cherchent à marquer des points sur l’échiquier géoéconomique mondial, à liquider un dirigeant peu accommodant… Les bonnes intentions donnent souvent de mauvaises idées, disait Machiavel. Alors comment s’y retrouver ? Sans doute en feuilletant les pages de l’histoire récente qui fournissent maints exemples des pièges tendus à la conscience. Les étudier permet de repenser la nécessaire prévention des conflits.