sábado, 20 de julho de 2013

Últimas palavras


Quando chegava o verão, o avô lembrava-se finalmente das crianças da casa. Durante todo o ano elas eram-lhe aparentemente indiferentes, mesmo nas festas de aniversário, mesmo no Natal, mesmo quando a avó dizia que alguma delas estava com febre.
Dava o dinheiro para as prendas quando era caso disso, perguntava se já tinham telefonado para o médico – mas nem perdia tempo a ouvir a resposta.
Mas quando o verão chegava, o avô instalava-se debaixo do limoeiro do jardim e escrevia frases. Muitas frases. Depois chamava-as e pedia-lhes a opinião. As crianças eram muito pequenas, encolhiam os ombros, e riam sem perceber nada. Mas o avô não se ria. O avô punha um ar muito sério e dizia que estava ali toda a sabedoria do mundo, e que era assim que se crescia.
Durante as longas tardes de verão, o avô inventava frases. Frases importantes e únicas, dizia ele. «Quando desaparecermos», repetia, «seremos lembrados sempre por aquilo que dissermos.» Depois costumava citar exemplos de colegas ilustres. «Passa-me os óculos – foi a última frase do Fernando Pessoa», dizia o avô muitas vezes, e as crianças riam ainda mais, porque nenhuma delas sabia quem era o Fernando Pessoa e, além disso, não acreditavam que alguém pudesse ficar conhecido só por ter dito uma frase igualzinha à que a velha Josefina andava sempre a dizer, porque nunca sabia onde é que deixava as coisas. Mas o avô garantia que sim, «as palavras que dizemos é o que de nós fica quando partirmos», e por isso passava horas debaixo do limoeiro do jardim, vendo toda a gente ir para a praia, e ele a inventar frases dignas de serem recordadas. «Frases únicas», repetia. [...] A mãe às vezes ainda insistia, «ó pai, venha lá até à praia!», mas ele que não, que não podia ser, que não tinha tempo a perder, daqui a nada vinha o outono [...]. A mãe abanava a cabeça, e ele ficava, debaixo do limoeiro, com o caderninho de capa de oleado muito perto dos olhos, escrevendo, escrevendo, escrevendo.
Um dia, estavam as crianças já muito bronzeadas da praia, o avô chamou-as e disse: «Vou morrer amanhã.» E, como sempre, elas riram muito, «essa não é má, avô, é melhor do que pedir os óculos!». E o avô continuou: «O meu coração não vai aguentar as primeiras chuvas.» E elas, «e quem é que falou em chover, avô? Está um sol que é uma beleza»; e ele, «entrou o inverno no limoeiro», e elas olharam umas para as outras e pensaram que, tal como a mãe murmurava às vezes para o pai, pensando que ninguém a ouvia, o avô já não dizia coisa com coisa.
Nessa noite a casa encheu-se de barulhos estranhos, e a Josefina entrou no quarto das crianças dizendo-lhes que não tivessem medo, e que ficassem muito quietas na cama, e que tentassem adormecer.
No dia seguinte, o céu estava cheio de nuvens e o jardim alagado da chuva que caíra de madrugada. «O vento deitou abaixo o limoeiro», disse Josefina, enquanto lhes punha o leite nas canecas. As crianças olharam umas para as outras. E nenhuma delas precisou de perguntar pelo avô.
Foi nesse verão que se tornaram adultos.
Mas isso só o compreenderam muitos anos depois.
Alice Vieira, «Últimas Palavras», Bica Escaldada, Lisboa, Editorial Notícias, 2004
(texto incluído na prova de Português do 12º ano, 2013, 2ª fase)

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