quinta-feira, 20 de junho de 2013

Crivelli "exportado"

C. Crivelli, Virgem com o Menino, Santo Emídio, São Sebastião, São Roque, São Francisco de Assis e o Beato Tiago da Marca


Respondo à resposta de João Miguel Tavares (J.M.T.) na sua crónica de 6 de Junho. Tendo que ser sintética, há, ainda assim, dois brevíssimos pontos prévios.
1. O destaque dado pelo PÚBLICO ao caso da exportação, talvez ilegal, da pintura de Crivelli enche-me o coração e consolida o acto da compra diária do jornal. Apesar da alarmante perda de qualidade, é o único órgão de comunicação em Portugal que tem (ainda?) jornalistas para a área da cultura e que são muito boas.
2. A crónica de J.M.T. provocou-me uma estranha impressão: num tempo em que as diferenças entre esquerda e direita são tão ténues, confirmei que sou de esquerda. Não trompe l’oeil como ele diz, em desnecessária chicana, mas com a convicção que a coisa pública existe, tem razão de ser e deve ser defendida. Sobretudo quando se trata de heranças culturais.
Passo à resposta dele: ‘A verdade é que o país não tem coisíssima nenhuma. O Crivelli é de Pais do Amaral.’
Para apoiar tão convicta “verdade”, J.M.T. cita o artigo 62º da Constituição Portuguesa que garante o direito à propriedade privada. Mas a verdade é que a Lei de Bases do Património Cultural, de 2001, foi aprovada, por unanimidade, na Assembleia da República e não está ferida de inconstitucionalidade. Ora, ela enuncia e regula o direito do Estado para reduzir drasticamente os direitos à propriedade, em defesa de patrimónios que, mesmo sendo propriedade privada, têm elevado valor cultural. É nesta civilizada lei (que, com nuances diversas, existe em todos os países da Europa) que me fundamentei para considerar que Portugal tinha e devia continuar a ter um Crivelli. Ele é agora (ainda será?) de quem o comprou para o vender logo a seguir, como antes fora, durante quase dois séculos, de uma família açoriana e, antes dela, de sei lá de quantos proprietários de que gostaríamos de saber o nome, só para sabermos mais sobre Crivelli.
Como é possível amesquinhar com tanta leviandade a energia do capital simbólico perante a efemeridade ferida de morte do dinheiro? As famílias italianas que permitiram a Crivelli criar são sombras, e se delas guardamos memória é por terem sido mecenas dele. Só por isso um papa como Júlio II me interessa. Não foi ele que criou Miguel Ângelo, antes este que lhe garantiu a glória da encomenda. E Calouste Gulbenkian, pouco mais de meio século após a sua morte, é definitivamente um museu.
A salvaguarda e valorização dos capitais simbólicos é um traço constitutivo da cultura europeia. Precisa de ser alimentado pelas políticas públicas e pela generosidade cívica. Coisas essenciais de que somos muito carentes, como prova a presente história.
Nota final: o à-vontade com que J.M.T. se me dirige, permite--me que lhe deixe um conselho, um bocado professoral. Precisa de estudar a cultura das vanguardas russas das duas primeiras décadas do século XX. E, como deve calcular, não é por causa dos “cartazes de Estaline”.
Raquel Henriques da Silva professora de História da Arte

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