Unamuno, na saída da Universidade, com os falangistas cercando o filósofo antes de entrar no carro.
No livro "O Ano da Morte de Ricardo Reis", cuja ação se passa em 1936, José Saramago recorda Miguel de Unamuno e Millán Astray (pág. 370 a 376 da 15ª edição). Episódio marcante e revelador envolveu ambos e dele encontrei o relato no site do jornal "O Estado de S. Paulo" (Estadão):
"Don
Miguel de Unamuno, filósofo espanhol, no fim da vida fez um discurso
emblemático a favor da razão contra o uso da força.
Neste 7 de abril, dia do jornalista, não falarei de um jornalista em si,
mas sobre um pensador. E sobre um governo que desprezava os pensadores e os
livros. Isto é, em resumo, é sobre a liberdade de expressão versus
o uso da força.
Os protagonistas: o filósofo e reitor de Salamanca, Miguel de Unamuno; o
general Millán Astray, líder da Legião Estrangeira, braço-direito do
generalíssimo Francisco Franco; uma multidão de militares e civis
falangistas-franquistas.
O cenário: o recinto de cerimônias da Universidade de Salamanca, cidade
que havia tornado-se capital provisória dos rebeldes.
O contexto: a guerra civil espanhola (1936-1939). Mais especificamente,
seus primeiros meses, quando as tropas de Franco e seus aliados avançavam pela
Espanha, tomando as principais cidades e realizando massacres de civis,
aprisionando e torturando os intelectuais, impondo uma censura sem precedentes
desde os tempos da Santa Inquisição.
O ano: 1936
O dia: 12 de Outubro, data na qual celebrava-se o “Dia da Raça” (mais
tarde denominado de “Dia da Hispanidade”), uma das principais datas nacionais
na Espanha.
No dia 18 de
julho de 1936, o reitor e filósofo Miguel de Unamuno, que havia colaborado
intensamente para a instauração da República em 1931, decidiu respaldar o golpe
militar que imediatamente foi monopolizado pelo general Francisco Franco. No
entanto, ao ver a repressão desatada que os rebeldes aplicavam contra a
população civil e a instalação de um regime autoritário, Unamuno começa a
perceber que o grupo que havia apoiado não era o que havia imaginado. Sua mesa
em seu escritório na Universidade fica coberto de cartas de amigos e conhecidos
que pedem que salve centenas de pessoas que estavam sendo detidas na cidade.
Seu amigo
Prieto Carrasco, prefeito republicano de Salamanca, e José Andrés y Manso,
deputado socialista, haviam sido assassinados. Na prisão, à espera do
fuzilamento, estavam seus amigos pessoais Filiberto Villalobos, médico, e o
jornalista José Sánchez Gómez. Outro amigo, o pastor anglicano e maçom Atilano
Coco, estava ameaçado de morte. Dezenas de alunos seus na Universidade haviam
sido levados à prisão.
O septuagenário
escritor vai até o palácio episcopal de Salamanca, onde Franco estava
hospedado, para pedir clemência para um grupo de pessoas que tentava salvar da
morte. É inútil. Franco fuzila todos.
Arrependido de
ter respaldado os rebeldes com seus prestígio internacional, Unamuno participa
– sem previsão de discurso algum – da abertura solene do ano acadêmico no dia
12 de outubro de 1936 no salão de cerimônias da Universidade.
Na tribuna
estavam sentados a mulher de Franco, Carmen Pólo, o bispo de Salamanca, Enrique
Plá y Deniel, e o chefe do Departamento de Imprensa e Propaganda de Franco, o
general José Millán Astray, fundador da Legião Estrangeira Espanhola, que havia
perdido o braço esquerdo e o olho direito nos combates no Marrocos. E além
deles, ali sentado estava Unamuno, nascido no país basco, uma das grandes
figuras da “Geração de 98”, que haviam revitalizado a cultura da Espanha nas
primeiras décadas depois da guerra hispano-americana, que havia mergulhado o
país na depressão.
Toda a alta
cúpula franquista estava presente. Menos Franco, que estava representado por um
imenso retrato pendurado em uma das paredes, ao qual a multidão realizava a
saudação fascista (nas quatro décadas seguintes a imagem de Franco estaria
presente em todos os lugares públicos e seu nome seria usado para rebatizar
ruas e avenidas).
Millán Astray
começou os discursos afirmando que “o fascismo seria o cirurgião que extirparia
a “falsa Espanha”, constituída pelos “bascos, catalães e comunistas.
O fascismo é o remédio da Espanha, os exterminará, cortando na carne viva como
um frio bisturi”.
Seu discurso
foi interrompido por seus simpatizantes, que começaram a gritar o slogan da
Legião: “Viva a morte!”.
Millán Astray,
tal como o pavovliano cachorro, gritou três vezes seguidas “Espanha!”
Os
simpatizantes ficaram em pé, estenderam seus braços direitos à moda fascista e
gritaram em coro: “Uma, grande, livre!”.
O
entourage rebelde: no centro da turma, o general Francisco Franco Bahamonde (o
mais baixinho) e seu amigo e general Millán Astray.
Não estava
previsto que Unamuno fosse discursar. Mas, o velho filósofo considerou que tudo
o que estava acontecendo era demasiado.
“Serei breve. A
verdade é mais verdade quando manifesta-se nua, livre de adornos e
palavreados…Falou-se aqui de guerra internacional em defesa da civilização
cristã; eu próprio o fiz outra vezes. Mas não, a nossa é apenas uma guerra
incivil”, disse Unamuno.
“Me conhecem
bem e sabem que não sou capaz de ficar em silêncio. Às vezes, ficar calado é o
mesmo que mentir, pois o silêncio pode ser interpretado como aceitação”.
“Gostaria
comentar o discurso, para chamá-lo de algum modo, do general Millán Astray, que
se encontra aqui entre nós. Vencer não é convencer e é preciso convencer,
principalmente, e não pode convencer o ódio que não deixa lugar para a
compaixão. Vou ignorar a afronta pessoal da súbita onda de vitupérios que ouvi
contra bascos e catalães. Eu mesmo, que dúvida cabe disso, nasci em Bilbao. O
bispo, goste ou não, é catalão de Barcelona. Ele ensina a doutrina cristã que o
sr (dirigindo-se a Millán Astray) não aprende. E eu, que sou basco, passei a
vida ensinando a vocês o idioma espanhol, que o sr não conhece”.
Vestido de
preto, com presença majestosa com sua barba branca, disse com voz firme, mas
serena: “acabo de ouvir o necrófilo grito de ‘viva a morte!’, que para
mim é como gritar ‘morte à vida’ ”.
Um close up na dupla: o cara da esquerda governaria a Espanha durante 4
décadas, mergulhando o país no atraso tecnológico e econômico, além de atrasar
a vida cultural do país (e isolando o país durante longo tempo). O sujeito da
direita seria o encarregado da propaganda oficial e imprensa durante certo
tempo. Sem querer parecer preconceituoso contra as aparências físicas…mas se
vocês derem de cara com um dos dois na rua, a partir das 19:00 hs, não sairiam
correndo?
Na seqüência,
indignado e enojado com os crimes, a censura e a perseguição cultural que os
rebeldes estavam protagonizando, Unamuno diz:
“E eu, que passei
toda a vida a criar paradoxos que provocaram a reprovação e a zanga daqueles
que não os compreenderam, tenho que lhes dizer, com autoridade na matéria, que
este ridículo paradoxo me parece repelente. Uma vez que foi proclamada em
homenagem ao último orador, entendo que foi a ele dirigida, se bem que de uma
forma excessiva e tortuosa, como testemunho de que ele próprio é um símbolo da
morte. E outra coisa (Unamuno, nesse momento, começa a exaltar-se com as
próprias palavras)…o general Millán-Astray é um inválido. Não é preciso que o
diga em tom mais baixo. É um inválido de guerra. Também o foi Cervantes. Porém
os extremos não servem como norma. Desgraçadamente, hoje em dia há demasiados
inválidos. E depressa haverá mais se Deus não nos ajudar. Me dói o fato de
pensar que o general Millán-Astray possa ditar normas de psicologia de massas.
Um inválido que não tenha a grandeza espiritual de Cervantes, que era um homem,
não um super-homem, viril e completo apesar das suas mutilações, um inválido,
como disse, que não possua essa superioridade de espírito, costuma sentir-se
aliviado vendo como aumenta o número de mutilados em seu redor. O general
Millán-Astray gostaria de criar uma Espanha nova, criação sem dúvida negativa,
à sua própria imagem. Por isso ele desejaria uma Espanha mutilada”.
Millán Astray –
que detestava Unamuno – fica encolerizado e grita “Morte à inteligência!”.
O público completa aos brados: “viva a morte!”. Os militares da Legião
sacam suas armas dos coldres. Unamuno, aparentemente sozinho nesse recinto, não
se intimida. Millán Astray continua gritando “morte à inteligência!” e
de repente ficam sem voz, afônico.
Subitamente,
após os gritos dos falangistas, um silêncio aparentemente interminável toma
conta do recinto da velha universidade. Todos olham na direção de Unamuno.
Ele fica em pé.
E concluiu sua derradeira lição magistral.
“Este é o
templo da inteligência! E eu sou o seu supremo sacerdote! Vocês estão
profanando o seu recinto sagrado. Sempre fui, apesar do que diz o provérbio,
profeta em meu próprio país. Vencereis, mas não convencereis. Vencereis porque
possuem a força bruta de sobra. Mas não convencereis, porque convencer
significa persuadir. E para persuadir precisam de uma coisa que lhes falta –
razão e direito na luta. E parece-me inútil pedir-lhes que pensem na Espanha”.
Unamuno só
conseguiu sair vivo do recinto de cerimônias de Salamanca porque Carmen Polo
Franco deu o braço a Unamuno e – depois de passar pela massa que apontava seus
revólveres contra a cabeça do filósofo, no meio de vaias e gritos – o
acompanhou até sua casa, para protegê-lo da fúria dos falangistas, que o
queriam linchar. Carmen, mais tarde, foi recriminada por Franco,
que durante horas reclamou de sua atitude e por não ter permitido que
executassem o filósofo “traidor” após o discurso.
No dia 22
Franco o destitui do cargo de reitor.
Dias depois,
recebe o escritor grego Nikos Kazantzakis, a quem diz: “um dia, em breve, me
levantarei e começarei uma luta pela liberdade, eu sozinho. Não sou fascista
nem bolchevique. Sou um solitário”.
No dia 31 de
dezembro de 1936, enquanto as tropas de Franco avançavam pela Espanha, Unamuno
falece."
Repare-se que comemoravam os fascistas o "Dia da Raça", hoje denominado "Dia da Hispanidade". Note-se que Cavaco Silva desenterrou recentemente a denominação de má memória "Dia da Raça".