quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

“Vencereis…mas não convencereis!”: Unamuno e a razão contra a força

Unamuno, na saída da Universidade, com os falangistas cercando o filósofo antes de entrar no carro.

No livro "O Ano da Morte de Ricardo Reis", cuja ação se passa em 1936, José Saramago recorda Miguel de Unamuno e Millán Astray (pág. 370 a 376 da 15ª edição). Episódio marcante e revelador envolveu ambos e dele encontrei o relato no site do jornal "O Estado de S. Paulo" (Estadão):
"Don Miguel de Unamuno, filósofo espanhol, no fim da vida fez um discurso emblemático a favor da razão contra o uso da força.
Neste 7 de abril, dia do jornalista, não falarei de um jornalista em si, mas sobre um pensador. E sobre um governo que desprezava os pensadores e os livros. Isto é, em resumo, é sobre a liberdade de expressão versus o uso da força.
Os protagonistas: o filósofo e reitor de Salamanca, Miguel de Unamuno; o general Millán Astray, líder da Legião Estrangeira, braço-direito do generalíssimo Francisco Franco; uma multidão de militares e civis falangistas-franquistas.
O cenário: o recinto de cerimônias da Universidade de Salamanca, cidade que havia tornado-se capital provisória dos rebeldes.
O contexto: a guerra civil espanhola (1936-1939). Mais especificamente, seus primeiros meses, quando as tropas de Franco e seus aliados avançavam pela Espanha, tomando as principais cidades e realizando massacres de civis, aprisionando e torturando os intelectuais, impondo uma censura sem precedentes desde os tempos da Santa Inquisição.
O ano: 1936
O dia: 12 de Outubro, data na qual celebrava-se o “Dia da Raça” (mais tarde denominado de “Dia da Hispanidade”), uma das principais datas nacionais na Espanha.
No dia 18 de julho de 1936, o reitor e filósofo Miguel de Unamuno, que havia colaborado intensamente para a instauração da República em 1931, decidiu respaldar o golpe militar que imediatamente foi monopolizado pelo general Francisco Franco. No entanto, ao ver a repressão desatada que os rebeldes aplicavam contra a população civil e a instalação de um regime autoritário, Unamuno começa a perceber que o grupo que havia apoiado não era o que havia imaginado. Sua mesa em seu escritório na Universidade fica coberto de cartas de amigos e conhecidos que pedem que salve centenas de pessoas que estavam sendo detidas na cidade.
Seu amigo Prieto Carrasco, prefeito republicano de Salamanca, e José Andrés y Manso, deputado socialista, haviam sido assassinados. Na prisão, à espera do fuzilamento, estavam seus amigos pessoais Filiberto Villalobos, médico, e o jornalista José Sánchez Gómez. Outro amigo, o pastor anglicano e maçom Atilano Coco, estava ameaçado de morte. Dezenas de alunos seus na Universidade haviam sido levados à prisão.
O septuagenário escritor vai até o palácio episcopal de Salamanca, onde Franco estava hospedado, para pedir clemência para um grupo de pessoas que tentava salvar da morte. É inútil. Franco fuzila todos.
Arrependido de ter respaldado os rebeldes com seus prestígio internacional, Unamuno participa – sem previsão de discurso algum – da abertura solene do ano acadêmico no dia 12 de outubro de 1936 no salão de cerimônias da Universidade.
Na tribuna estavam sentados a mulher de Franco, Carmen Pólo, o bispo de Salamanca, Enrique Plá y Deniel, e o chefe do Departamento de Imprensa e Propaganda de Franco, o general José Millán Astray, fundador da Legião Estrangeira Espanhola, que havia perdido o braço esquerdo e o olho direito nos combates no Marrocos. E além deles, ali sentado estava Unamuno, nascido no país basco, uma das grandes figuras da “Geração de 98”, que haviam revitalizado a cultura da Espanha nas primeiras décadas depois da guerra hispano-americana, que havia mergulhado o país na depressão.
Toda a alta cúpula franquista estava presente. Menos Franco, que estava representado por um imenso retrato pendurado em uma das paredes, ao qual a multidão realizava a saudação fascista (nas quatro décadas seguintes a imagem de Franco estaria presente em todos os lugares públicos e seu nome seria usado para rebatizar ruas e avenidas).
Millán Astray começou os discursos afirmando que “o fascismo seria o cirurgião que extirparia a “falsa Espanha”, constituída pelos “bascos, catalães e comunistas. O fascismo é o remédio da Espanha, os exterminará, cortando na carne viva como um frio bisturi”.
Seu discurso foi interrompido por seus simpatizantes, que começaram a gritar o slogan da Legião: “Viva a morte!”.
Millán Astray, tal como o pavovliano cachorro, gritou três vezes seguidas “Espanha!”
Os simpatizantes ficaram em pé, estenderam seus braços direitos à moda fascista e gritaram em coro: “Uma, grande, livre!”.
O entourage rebelde: no centro da turma, o general Francisco Franco Bahamonde (o mais baixinho) e seu amigo e general Millán Astray.
Não estava previsto que Unamuno fosse discursar. Mas, o velho filósofo considerou que tudo o que estava acontecendo era demasiado.
“Serei breve. A verdade é mais verdade quando manifesta-se nua, livre de adornos e palavreados…Falou-se aqui de guerra internacional em defesa da civilização cristã; eu próprio o fiz outra vezes. Mas não, a nossa é apenas uma guerra incivil”, disse Unamuno.
“Me conhecem bem e sabem que não sou capaz de ficar em silêncio. Às vezes, ficar calado é o mesmo que mentir, pois o silêncio pode ser interpretado como aceitação”.
“Gostaria comentar o discurso, para chamá-lo de algum modo, do general Millán Astray, que se encontra aqui entre nós. Vencer não é convencer e é preciso convencer, principalmente, e não pode convencer o ódio que não deixa lugar para a compaixão. Vou ignorar a afronta pessoal da súbita onda de vitupérios que ouvi contra bascos e catalães. Eu mesmo, que dúvida cabe disso, nasci em Bilbao. O bispo, goste ou não, é catalão de Barcelona. Ele ensina a doutrina cristã que o sr (dirigindo-se a Millán Astray) não aprende. E eu, que sou basco, passei a vida ensinando a vocês o idioma espanhol, que o sr não conhece”.
Vestido de preto, com presença majestosa com sua barba branca, disse com voz firme, mas serena: “acabo de ouvir o necrófilo grito de ‘viva a morte!’, que para mim é como gritar ‘morte à vida’ ”.
Um close up na dupla: o cara da esquerda governaria a Espanha durante 4 décadas, mergulhando o país no atraso tecnológico e econômico, além de atrasar a vida cultural do país (e isolando o país durante longo tempo). O sujeito da direita seria o encarregado da propaganda oficial e imprensa durante certo tempo. Sem querer parecer preconceituoso contra as aparências físicas…mas se vocês derem de cara com um dos dois na rua, a partir das 19:00 hs, não sairiam correndo?
Na seqüência, indignado e enojado com os crimes, a censura e a perseguição cultural que os rebeldes estavam protagonizando, Unamuno diz:
“E eu, que passei toda a vida a criar paradoxos que provocaram a reprovação e a zanga daqueles que não os compreenderam, tenho que lhes dizer, com autoridade na matéria, que este ridículo paradoxo me parece repelente. Uma vez que foi proclamada em homenagem ao último orador, entendo que foi a ele dirigida, se bem que de uma forma excessiva e tortuosa, como testemunho de que ele próprio é um símbolo da morte. E outra coisa (Unamuno, nesse momento, começa a exaltar-se com as próprias palavras)…o general Millán-Astray é um inválido. Não é preciso que o diga em tom mais baixo. É um inválido de guerra. Também o foi Cervantes. Porém os extremos não servem como norma. Desgraçadamente, hoje em dia há demasiados inválidos. E depressa haverá mais se Deus não nos ajudar. Me dói o fato de pensar que o general Millán-Astray possa ditar normas de psicologia de massas. Um inválido que não tenha a grandeza espiritual de Cervantes, que era um homem, não um super-homem, viril e completo apesar das suas mutilações, um inválido, como disse, que não possua essa superioridade de espírito, costuma sentir-se aliviado vendo como aumenta o número de mutilados em seu redor. O general Millán-Astray gostaria de criar uma Espanha nova, criação sem dúvida negativa, à sua própria imagem. Por isso ele desejaria uma Espanha mutilada”.
Millán Astray – que detestava Unamuno – fica encolerizado e grita “Morte à inteligência!”. O público completa aos brados: “viva a morte!”. Os militares da Legião sacam suas armas dos coldres. Unamuno, aparentemente sozinho nesse recinto, não se intimida. Millán Astray continua gritando “morte à inteligência!” e de repente ficam sem voz, afônico.
Subitamente, após os gritos dos falangistas, um silêncio aparentemente interminável toma conta do recinto da velha universidade. Todos olham na direção de Unamuno.
Ele fica em pé. E concluiu sua derradeira lição magistral.
“Este é o templo da inteligência! E eu sou o seu supremo sacerdote! Vocês estão profanando o seu recinto sagrado. Sempre fui, apesar do que diz o provérbio, profeta em meu próprio país. Vencereis, mas não convencereis. Vencereis porque possuem a força bruta de sobra. Mas não convencereis, porque convencer significa persuadir. E para persuadir precisam de uma coisa que lhes falta – razão e direito na luta. E parece-me inútil pedir-lhes que pensem na Espanha”.
Unamuno só conseguiu sair vivo do recinto de cerimônias de Salamanca porque Carmen Polo Franco deu o braço a Unamuno e – depois de passar pela massa que apontava seus revólveres contra a cabeça do filósofo, no meio de vaias e gritos – o acompanhou até sua casa, para protegê-lo da fúria dos falangistas, que o queriam linchar. Carmen, mais tarde, foi recriminada por Franco, que durante horas reclamou de sua atitude e por não ter permitido que executassem o filósofo “traidor” após o discurso.
No dia 22 Franco o destitui do cargo de reitor.
Dias depois, recebe o escritor grego Nikos Kazantzakis, a quem diz: “um dia, em breve, me levantarei e começarei uma luta pela liberdade, eu sozinho. Não sou fascista nem bolchevique. Sou um solitário”.
No dia 31 de dezembro de 1936, enquanto as tropas de Franco avançavam pela Espanha, Unamuno falece."
Repare-se que comemoravam os fascistas o "Dia da Raça", hoje denominado "Dia da Hispanidade". Note-se que Cavaco Silva desenterrou recentemente a denominação de má memória "Dia da Raça".

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Jorge Listopad

Prefácio do último livro de Jorge Listopad:
"Não gosto de falar de mim, mas falo — não gosto de falar dos textos, mas sou-lhes permeável. Quando escrevo, é como se fosse o meu primeiro e o meu último livro. Bem sei que entre o primeiro e o último existe apenas um espaço, ora mais curto, ora mais comprido, isso depende da potên- cia eólica dos moinhos de vento de hoje. É verdade, quase tudo é vento: em cima o do céu, em baixo a narrativa.
o livro que o leitor tem na mão, Remington, divide-se em duas partes, ciente que a comunicação tem vários processos. a primeira parte chama-se Vale das borboletas mortas. ao escrevê- -la, por vezes sorri, moderei o meu amor e até me deixei apa- nhar pela melancolia eslava; quiçá repeti-me e, se assim foi, perdi tempo e os contos perderam o carácter de mistério que consiste numa proposta entre o real e a ficção e cuja síntese me atrai tremendamente. Quarenta e um contos sem parasitação teórica.
a segunda parte aproxima-se de uma outra realidade, diria alucinatória, traduzida por uma técnica de narrar. porém, mesmo assim, o rio da memória encharca os pés dos tex- tos. o nome desta série pertence a um enredo que procura Gibraltar, onde o território de facto não consta, ou, antes, não figura no mapa que conhecemos, na sua passagem entre o Mediterrâneo amado e o atlântico respeitado, isto é, entre o nosso Homero e um qualquer Neptuno metafísico.
entre o primeiro livro e este último — Remington — existem apenas coisas da vida e do seu oposto."
Dois contos lidos, aqui
Três contos, aqui
Crítica no Ipsilon, aqui
Sobre o livro, na TSF, aqui
Excertos da entrevista a Jorge Listopad, em 2003, aqui

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

A Felicidade em Albert Camus

"A última edição de «A Felicidade em Albert Camus», de Marcello Duarte Mathias (Rio de Janeiro, 1975; 3ª ed., D. Quixote, 2013) apresenta-nos na capa um jovem que sorri. Não estamos perante a imagem de alguém que transporta os males do mundo, mas de um homem que olha atento o tempo em que vive – perscrutando o absurdo da existência. A obra tornou-se profundamente atual, e invoca bem o escritor no ano do centenário.

UM JOVEM MARCANTE
Já cem anos… A imagem que temos de Albert Camus é a de alguém que partiu cedo, jovem, com apenas 46 anos, antes de nos ter legado a obra que dele esperaríamos. O tempo passou e a sua influência, longe de se ter desvanecido, cresceu e tornou-se um símbolo do tempo em que viveu – de grandes mudanças e escolhas dilacerantes: a emergência do singular, os existencialismos, a consideração do absurdo, num contexto de fim de uma guerra violenta e de queda do eurocentrismo e dos colonialismos. No dia 3 de janeiro de 1960, o potente Facel-Vega de Michel Gallimard despistou-se numa longa reta, perto de Montereau, embatendo contra um plátano. Albert Camus, que deveria ter viajado de comboio, teve morte imediata, o editor resistiria cinco dias. Tudo absurdo. Numa pasta de couro, estavam cento e quarenta e quatro páginas de «Le Premier Homme», romance incompleto que veria a luz do dia numa edição em 1994. Sete anos antes, Camus escrevera «L’Homme Revolté», que gerara uma tempestade nos meios intelectuais parisienses, por comparar a barbárie nazi e a lógica estalinista, o que conduziu ao corte de relações com Sartre e a uma violenta reação da revista «Les Temps Modernes». Em 1957, no auge do conflito argelino, depois de tentar uma via legalista (então impossível), no momento em que o Prémio Nobel reconhece a importância da sua obra, incendeia, de novo, o debate político ao dizer «creio na justiça, mas defenderia a minha mãe antes da justiça». Num tempo em que os nervos estão à flor da pele e em que o tema da independência e da autodeterminação estava na ordem do dia, a independência de Camus é por muitos interpretada como um desvio aos ideais da esquerda. E à pergunta se se considerava um intelectual de esquerda contrapõe: «Não estou certo de ser um intelectual. Quanto ao resto, sou pela esquerda, apesar de mim, e apesar dela». A obra de Marcello Duarte Mathias sobre Camus tornou-se profundamente atual. Limpos os circunstancialismos dramáticos de debates muito duros de vida ou de morte, podemos reencontrar Camus como alguém que compreendeu a história, recusando uma lógica de sistema. Como o autor português do magnífico ensaio recorda, Camus fez seu o grito de alma de Píndaro, colocando-o como epígrafe de «O Mito de Sísifo»: «Ó minha alma, não aspires à vida imortal mas esgota o campo do possível». De facto, como diz Marcello: «para lá das contingências históricas que o condicionam, todo o homem é uma liberdade em movimento, liberdade que se afirma e interroga ao serviço de uma ambição mais alta». Eis o centro desta reflexão. Eis a marca fundamental da personalidade de Albert Camus – engrandecer o homem e desdenhar o que o apouca e empobrece. E a decantação do tempo permitiu que essa liberdade se tenha projetado para além dos episódios momentâneos dessa hora já distante. Sendo certo que (como bem viu Raymond Aron) não estamos perante alguém que apenas foi clarividente. Não, Camus foi importante porque viu o que poderia ver, mesmo sem ver tudo, como sempre no-lo disse. Cometeu erros? Poderia ter dito mais? O certo, porém, é que teve as intuições fundamentais. Como referia o obituário do «The Times», Camus foi «a man who walked alone», e como tal soube definir o momento histórico singular em que viveu. Não por acaso, tanto Calígula como Sísifo são protagonistas únicos. E a felicidade, como o absurdo, são filhos da mesma terra, da relação entre o homem e o mundo e entre o mundo e os outros homens.

O TESTEMUNHO DE MOUNIER
Num ensaio luminoso, intitulado «Albert Camus ou l’appel des humiliès» (Esprit, jan. 1950), escrito pouco antes de morrer, Emmanuel Mounier procura compreender a originalidade do autor de «État de Siège». «O mundo nem é tão racional assim, nem irracional. É desrazoável, e nada mais que isso». Aqui estaria a raiz do absurdo – «como divórcio entre o espírito que deseja e o mundo que desilude, este espírito e este mundo estão confrontados um contra o outro sem poderem abraçar-se» (como se diz no «Mito»). O absurdo é o «pecado sem Deus». E Camus recusava o jogo de palavras de um suposto divórcio entre o homem e o mundo. Como diz Mounier a «vitalidade mediterrânica que bate no coração de Camus não pode tirar, do nada como espetáculo, o dever de agravar ainda mais a negação. Mesmo o absurdo quer mantê-lo em vida, não como absurdo, mas como algo de vivo». E, em convergência com o tema do ensaio de M.D.M., diz-se que «a abstração se opõe à felicidade». É esta recusa da abstração e do sistema (que nos aproxima de Kierkegaard) que torna os temas da felicidade e da vida decisivos. A felicidade passa além do heroísmo, levando-nos a uma «exigência generosa» (que encontramos em «A Peste» e nas «Cartas a um Amigo Alemão»). E o absurdo é o contrário da esperança. Mounier fala, por isso, de uma «esperança de desesperados», unindo os destinos de Malraux, Camus, Sartre e Bernanos. Para eles, a recusa não é uma renúncia, como um não de método, mas um sim à vida. E a felicidade é a maior das conquistas contra o destino que nos é imposto… É a vida que está em causa. E foi isso que perturbou os bem pensantes quando Camus invocou o exemplo da sua mãe, exposta ao drama da violência. Calígula organiza a indiferença. Mas nem tudo é permitido. A vontade incessante e obstinada do homem é que decide o absurdo. A Prometeu, herói da superação, Camus contrapõe Sísifo, herói da incessante repetição. Impõe-se compreender os limites: escolher a história contra o eterno, a ação contra a contemplação, o presente contra a abstração, «escolher uma vida inteiramente votada à dispersão». O que tem sentido para Camus? Não é um sentido superior, mas um sentido «le monde a du moins la verité de l’homme». Tolstoi como Camus (segundo Mounier) consideram como raiz do mal a cedência à autoridade de uma abstração, estatista ou teocrática (Magris falou-nos da idolatria). Daí a importância dos limites. Anos passados, M.D.M sabe que as considerações que apôs no final da sua reflexão confirmaram, de pleno, a indiscutível influência de Camus, o caráter premonitório das suas considerações e, sobretudo, a abertura de horizontes no sentido dos limites e da imperfeição. «Camus possuía uma profunda, uma tenaz esperança nas virtualidades redentoras do homem. Essa esperança apontava um caminho e constituía, já de per si, uma promessa de plenitude que o levava a naturalmente imaginar Sísifo feliz – pois não renova Sísifo todos os dias, perante todos e sem desfalecimentos, a liberdade do seu sonho? Isolado decerto, mas solidário dos outros na procura e conquista da felicidade. E é isso o que afinal importa»."
Guilherme d'Oliveira Martins

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Almada Negreiros I

Autorretrato
Paris e eu
Um dia foi a minha vez de ir a Paris. Foi necessário um passaporte. Pediram a minha profissão. Fiquei atrapalhado. Pensei um pouco para responder verdade e disse verdade: Poeta!
Não aceitaram.
Também pediram o meu estado. Fiquei atrapalhado. Pensei um pouco para responder verdade: Menino!
Também não aceitaram.

E para ter o passaporte tive de dizer o que era necessário para ter o passaporte, isto é uma profissão que houvesse! E um estado que houvesse!

(José de Almada Negreiros in "A invenção do dia claro"

quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Um Dó Li Tá


"Perguntam-me muitas vezes por que motivo nunca falo do governo nestas crónicas e a pergunta surpreende-me sempre. Qual governo? É que não existe governo nenhum. Existe um bando de meninos, a quem os pais vestiram casaco como para um baptizado ou um casamento. Claro que as crianças lhes acrescentaram um pin na lapela, porque é giro
-Eh pá embora usar um pin?
que representa a bandeira nacional como podia representar o Rato Mickey"
(início da crónica de António Lobo Antunes, intitulada "Um Dó Li Tá", publicada na Visão de hoje)


quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Antígona de Sófocles

Antígona por Frederic Leighton (1830–1896)

"Se me fosse permitido escolher uma só página da literatura para lançar no espaço em testemunho da humanidade, escolheria o monólogo de Antígona, de Sófocles". Claudio Magris citado por Guilherme d'Oliveira Martins (GOM) in Jornal de Letras de hoje. Depois de citar Claudio Magris, GOM escreve "A referência a Antígona não é casual, é um símbolo de ligação entre a humanidade e a memória, entre a justiça e a verdade."
A tragédia: "Logo após a fracassada tentativa dos sete chefes contra Tebas, Creonte, rei de Tebas, decreta que os cadáveres dos inimigos da cidade ficarão insepultos e sem os ritos fúnebres de praxe (na falta deles, a alma dos mortos não seria recebida por Hades). A penalidade estipulada para quem desobedecesse o decreto era a morte.
Polinices, um dos filhos de Édipo e sobrinho de Creonte, estava entre os atacantes; o decreto de Creonte, portanto, aplica-se também a ele. Antígona, revoltada com a ordem do tio, cobre secretamente o corpo do irmão com um pouco de terra e realiza alguns dos rituais que a religião grega preconizava para os mortos.
Descoberta, Antígona confronta Creonte com coragem e altivez, e é condenada à morte. Posteriormente as profecias de Tirésias amedrontam Creonte e ele recua; ordena a imediata libertação da moça, mas ao procurá-la descobre-se que ela, seu filho Hémon e sua esposa Eurídice haviam se suicidado." (in http://greciantiga.org/arquivo.asp?num=0434)

Análise de Jefferson Luiz Maleski (transcrição parcial):
A tragédia Antígona mostra como duas opiniões opostas podem ser corretas dependendo do ângulo analisado.
Os dois filhos homens de Édipo, Etéocles e Polinice, morrem em batalha no mesmo dia. Um contra o outro. Um a favor e o outro contra a cidade de Tebas, que passa a ser governada pelo cunhado de Édipo, Creonte. Creonte então manda enterrar honrosamente ao primeiro, mas lança uma lei de que o segundo não seja velado nem sepultado e, por ser um traidor de sua pátria, quem o fizesse seria igualmente considerado traidor. Acontece que Antígona, filha de Édipo e irmã dos falecidos, infringe a lei e presta as honras fúnebres ao morto. Com este gesto é condenada à morte.
Creonte pode ser considerado por muitos como o tirano na história, mas ele fez o que qualquer governante em seu lugar faria. Ele homenageou o herói e puniu o traidor. Nada mais justo e legal aos olhos do estado. E quando Antígona infringiu a lei, mesmo que significasse punir sua sobrinha e futura nora, não poderia voltar atrás. Considerou que ele não poderia abrir uma exceção à lei somente pelas súplicas dos seus próximos. A lei era superior ao rei. “Se eu tolerar os desmandos da minha gente, perderei autoridade sobre os demais. [...] O insolente, o transgressor das leis, o que se opõe às autoridades não conte com meu aplauso. A que a cidade conferiu poder, a este importa obedecer, seja nas grandes questões seja nas justas… e até nas injustas. [...] Não há mal maior que a anarquia, ela devasta cidades, arrasa casas, aniquila a investida de forças aliadas”. A desobediência de Antígona era um ato contra o poder de Creonte, contra as leis do estado, contra o próprio direito soberano. Creonte foi firme em defender a sua posição, assim como hoje os governantes são firmes (ao menos em tese) quando aplicam a lei aos transgressores (outra tese), pois a não punição levaria ao caos e anarquia.
Por outro lado, Antígona também tinha a sua razão. Como ela poderia obedecer a lei estatal e desobedecer a lei moral, religiosa, que mandava prestar homenagens fúnebres aos parentes mortos? A grande questão era: qual das duas leis teria primazia? Ela escolheu a lei de seus deuses, de sua moral e de sua religião. Mesmo que isto significasse a morte. Ela defendeu-se perante Creonte: “Nem eu supunha que tuas ordens tivessem o poder se superar as leis não-escritas, perenes, dos deuses, visto que és mortal. Pois elas não são de ontem nem de hoje, mas são sempre vivas, nem se sabe quando surgiram. Por isso, não pretendo, por temor às decisões de algum homem, expor-me à sentença divina”. Quantos em toda história da humanidade não morreram por um ideal? Quantos hoje não morreriam quais mártires por sua crença, por sua família ou por aquilo que faz parte de sua essência como humano? Muitos o fariam, assim como Antígona.
Existe outra discussão sobre se os reais motivos tanto de Antígona quanto de Creonte não seriam políticos. Com os dois sucessores ao trono mortos (os irmãos de Antígona), o próximo herdeiro foi Creonte. Da linhagem dos Labdácidas (Laio e Édipo), sobraram somente Antígona e sua irmã, Ismene. Como Ismene cala-se a respeito do edito real, Antígona com a sua desobediência, silenciosamente incita o povo contra Creonte. Todos passam a admirar e concordar com a atitude dela em relação ao seu irmão. Começam a falar contra o governante. Creonte também pode ter tido a idéia de despoluir Tebas exterminando os descendentes incestuosos de Édipo, pois estes eram amaldiçoados. Caso o seu filho Hemon se casasse com Antígona, a maldição continuaria em seus próprios netos.
Como toda boa tragédia grega, no final muita gente morre. Mas o importante não é a contagem de corpos, antes, a discussão sobre grandes temas que envolvem moral, direito, política e filosofia. Esta discussão ainda faz parte do presente, onde vários pensadores e críticos tem analisado a obra de diferentes pontos-de-vista.

O monólogo de Antígona:
"Ó meu túmulo e meu tálamo nupcial, ó lar cavado na rocha que me guardarás prisioneira para sempre! Para aí avanço ao encontro dos meus, de que Perséfone recebeu já o maior número entre os mortos; dentre eles, restava eu, em muito a mais perversa; a caminho já vou, antes que se tivesse cumprido o destino da minha vida. Espero, porém, confiadamente, que, ao chegar, serei bem-vinda para o meu pai, e querida para ti, minha mãe, e cara a ti, meu irmão, pois, quando morrestes, eu, querido, pois, quando morrestes, eu, pelas minhas próprias mãos, vos lavei e adornei, e derramei sobre o túmulo as libações. E agora, Polinices, por ter dado sepultura ao teu corpo, obtenho esta recompensa.
E contudo, eu soube bem honrar-te, aos olhos dos que pensam bem. Pois nem que eu fosse uma mãe com filhos, nem que tivesse um marido que apodrecesse morto, eu teria empreendido estes trabalhos contra o poder da cidade. Mas em atenção a que princípio é que eu digo isto? Se me morressem esposo, outro haveria, e teria um filho de outro homem, se houvesse perdido um. Mas estando pai e mãe ocultos no Hades, não poderá germinar outro irmão. Por eu ter preferido honrar-te, devido a este princípio, é que eu apareci aos olhos de Creonte como culpada e ousada, ó meu caro irmão! E agora ele tem-me nas suas mãos, e leva-me, privada de tálamo, privada do hirmeneu, sem me terem tocado em sorte os esponsais nem a criação de filhos, mas vai esta infeliz, abandonada pelos amigos, ainda viva, para os sepulcros dos mortos. Qual foi a lei divina que eu transgredi? Porque Heitor-de eu, aí de mim, olhar ainda para os deuses? Quem invocarei para me valer, já que por usar de piedade fiquei possuída de impiedade?
Mas se está pena é bela aos olhos dos deuses, só depois de a termos sofrido poderemos reconhecer que errámos. Se, porém, são eles que erram, que eles não sofram maiores males do que aqueles a que me forçaram, fora da lei."

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Quero fazer contigo o que a primavera faz com as cerejeiras

Brincas todos os dias com a luz do universo. 
Subtil visitadora, chegas na flor e na água. 
És mais do que a pequena cabeça branca que aperto 
como um cacho entre as mãos todos os dias.


Com ninguém te pareces desde que eu te amo. 
Deixa-me estender-te entre grinaldas amarelas. 
Quem escreve o teu nome com letras de fumo entre as estrelas do sul?


Ah deixa-me lembrar como eras então, quando ainda não existias. 


Subitamente o vento uiva e bate à minha janela fechada. 
O céu é uma rede coalhada de peixes sombrios. 
Aqui vêm soprar todos os ventos, todos. 
Aqui despe-se a chuva.


Passam fugindo os pássaros.
O vento. O vento.
Eu só posso lutar contra a força dos homens.
O temporal amontoa folhas escuras
e solta todos os barcos que esta noite amarraram ao céu.


Tu estás aqui. Ah tu não foges. 
Tu responder-me-ás até ao último grito. 
Enrola-te a meu lado como se tivesses medo. 
Porém mais que uma vez correu uma sombra estranha pelos teus olhos.


Agora, agora também, pequena, trazes-me madressilva, 
e tens até os seios perfumados. 
Enquanto o vento triste galopa matando borboletas 
eu amo-te, e a minha alegria morde a tua boca de ameixa.


O que te haverá doído acostumares-te a mim, 
à minha alma selvagem e só, ao meu nome que todos escorraçam. 
Vimos arder tantas vezes a estrela d'alva beijando-nos os olhos 
e sobre as nossas cabeças destorcerem-se os crepúsculos em leques rodopiantes.
As minhas palavras choveram sobre ti acariciando-te. 
Amei desde há que tempo o teu corpo de nácar moreno. 
Creio-te mesmo dona do universo. 
Vou trazer-te das montanhas flores alegres, «copihues», 
avelãs escuras, e cestos silvestres de beijos. 


Quero fazer contigo 
o que a primavera faz com as cerejeiras.


(Pablo Neruda in "Vinte poemas e uma canção desesperada", tradução de Fernando Assis Pacheco, Poema 14)

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

Escritaria. Mário de Carvalho

De hoje até domingo decorre a Escritaria, em Penafiel. Este ano, o autor homenageado é Mário de Carvalho. Para falar da sua obra, além do próprio, estarão lá: Lídia Jorge, Ricardo Araújo Pereira, Gonçalo M. Tavares, José Carlos Vasconcelos.

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Kierkegaard. Exposição na Biblioteca Nacional


A mostra reúne bibliografia publicada em Portugal de e sobre Søren Kierkegaard (1813-1855) e um conjunto de 16 painéis descritivos da sua vida e obra, que assinalam e celebram o bicentenário do seu nascimento. Além da Biblioteca Nacional de Portugal e das instituições culturais dinamarquesas responsáveis pela sua conceção, tuteladas pelos Ministérios da Cultura e dos Negócios Estrangeiros da Dinamarca, a mostra conta com o apoio da Embaixada da Dinamarca em Lisboa e do Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa.

A obra de Søren Kierkegaard — muita dela escrita sob pseudónimo — atingiu, em vida do autor, um escasso número de leitores. Pelo contrário, a partir do início do séc. XX, a sua obra passou a ser objeto de intensa e generalizada investigação. Kierkegaard exerceu uma influência significativa em filósofos de várias escolas e nacionalidades, entre os quais se contam Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir e Albert Camus, e também Miguel de Unamuno, Martin Heidegger, Karl Jaspers e Ludwig Wittgenstein, e, na atualidade, por exemplo, Alain Badiou ou Slavoj Žižek. No campo da teologia, Kierkegaard marcou, entre outros, Dietrich Bonhoeffer, Paul Tillich, Karl Bath e Rudolf Bultmann. No campo literário, o impacto de Kierkegaard é reconhecível, numa primeira geração, em Henrik Ibsen, August Strindberg e Franz Kafka, mas hoje em dia estende-se a autores de muitas outras literaturas.

Em Portugal, durante o séc. XX, a receção de Søren Kierkegaard caracteriza-se por uma investigação de iniciativa marcadamente individual ao longo de sucessivas gerações de tradutores e de filósofos. Distinguem-se inicialmente Adolfo Casais Monteiro (1908-1972), José Marinho (1904-1975), e Delfim Santos (1907-1966), cuja influência se desenvolveu tanto nos círculos literários como académicos. Eduardo Lourenço (n.1923) é a figura dominante na geração que acolhe criticamente o Existencialismo. Merece também destaque o fluxo ensaístico que veio a lume durante a década de 60, revelador da presença contínua da filosofia de Kierkegaard na produção literária e filosófica em Portugal. É a primeira década do séc. XXI que anuncia um novo fôlego na investigação kierkegaardiana, que surge agora mais enraizada na universidade. Publicaram-se as primeiras traduções a partir do original dinamarquês, acompanhadas pela realização regular de conferências e pela publicação de estudos sobre a obra do autor, num conjunto de realizações que assinala inequivocamente uma mudança de paradigma na receção portuguesa do filósofo dinamarquês.
(do site da Biblioteca Nacional)

terça-feira, 10 de setembro de 2013

Onde se pensa?


"Cada vez, diga-se, pensamos em menos espaços. Os espaços de pensamento estão a desaparecer . No teatro diz-se (já ouvimos muitas vezes): o teatro não é para pensar. No cinema diz-se: o cinema não é para pensar. Na arte diz-se: a arte não é para pensar. Na literatura diz-se: A literatura não é para pensar. Nos jornais: os jornais não são para pensar e etc., e etc. A questão que fica é : então, onde é que se pensa ? No quarto sozinhos ? Fechados na casa de banho ? 
Num submarino ?
Pensar tornou-se quase sinónimo de incomodar os outros. Como se pensar fosse uma falta de educação. Pensar à frente dos outros, que indiscrição, que falta de pudor! Pensar começa a ser uma actividade que se tolera apenas quando um homem está só e a muitos metros abaixo do solo. Pensar, sim, mas no subterrâneo. Certamente chegará o momento em que levarão as pessoas que pensam para uma mina a muitos metros abaixo do solo e depois dirão: pensem aí à vontade.
Acredito que com o tempo poderá surgir uma espécie de aldeia de pensadores debaixo do chão.Uma comunidade paralela à nossa, que não chegará a ver a luz do sol - e que ali continuará, nas profundezas, a pensar; a pensar muito. Uma comunidade de pensadores-mineiros. Ou melhor, uma comunidade de pensadores transformados, à força, em mineiros. Descubram metal valioso, sim, mas lá em baixo. Uma cidade abaixo do nível do chão.
Ou então, enviar quem pensa para o mar. Eis outra hipótese. Como se os pensadores fossem pescadores que não querem peixes, pescadores do nada. Não querem apanhar nenhum animal, nenhum objecto, nada - só querem apanhar ideias, que desperdício! Eis, então uma segunda comunidade possível. Os homens que pensam são expulsos para o mar; para o alto mar!
Eis uma situação ficcional. Um navio gigante cheios de homens que pensam; os melhores pensadores de todas as cidades ali estão, embarcado; vivos, sim, e fortes, sim, mas longe da terra e dos sítios onde tudo se decide, longe de qualquer movimento político, longe do parlamento. Os pensadores estão apenas a par dos movimentos do mar; porém os homens que ficam em solo firme, os que expulsaram esse barco do pensamento como se fosse um navio de detritos, de restos - navio lançado ao mar para aí ficar para sempre - os que ficaram em solo firme suspiram de alívio. E se esse navio se aproximar da costa será bombardeado. Eis o barco dos pensadores, o barco dos homens que incomodam o discurso que se faz em terra firme.
E eis, então, que são criadas duas cidades para pensadores : uma cidade abaixo da terra e outra acima do mar, literalmente - uma cidade móvel, um barco.
Em terra firme, na cidade que não treme, eis quem fica: Aquele humano que não é mal educado; aquele que 
só pensa depois dos outros, nunca antes. Como se pensar fosse semelhante a deixar passar senhoras de idade à frente nas portas.
- Primeiro pense o senhor.
- Não, por favor, primeiro pense o senhor. E assim ficam minutos, horas, dias, bem educados a insistirem para que o outro pense primeiro. E como são muitíssimos bem educados ninguém se atreve a dar o primeiro passo e por isso alí ficam, assim, de frente uns para os outros, com rosto de peixe e pensamento nenhum; em terra firme, mas tonta."
Gonçalo M. Tavares 
Crónica publicada na Revista Visão de 22 de Agosto de 2013

segunda-feira, 22 de julho de 2013

Claudio Magris venceu o Prémio Europeu Helena Vaz da Silva


É um dos grandes intelectuais europeus da actualidade, um eterno candidato ao Nobel da Literatura. O escritor italiano Claudio Magris, de 74 anos, venceu o primeiro Prémio Europeu Helena Vaz da Silva para a divulgação do Património Cultural, instituído pela Europa Nostra, em parceria com o Centro Nacional de Cultura e o Clube Português de Imprensa.
À hora em que o prémio foi este domingo anunciado, Claudio Magris, ensaísta especializado nos grandes dilemas da Europa, autor de obras tão conhecidas e aplaudidas pela crítica como Danúbio (Dom Quixote), passeava-se (e passeia) pelo alto mar. Mas não partiu para longe do mundo que tanto analisa sem antes ter deixado uma mensagem de agradecimento por mais uma distinção.
Numa carta endereçada ao júri, presidido por Guilherme d’Oliveira Martins (presidente do Centro Nacional de Cultura), Claudio Magris expressou a “mais profunda gratidão por este grande, generoso e totalmente inesperado reconhecimento”, que, acrescenta. “chega de um país que sempre esteve presente na minha fantasia, nos meus interesses, no meu imaginário”.
“Não sou um lusitanista e infelizmente não falo português, mas a história, a civilização e a literatura desse pequeno grande país sempre desempenharam para mim um importante papel, sempre me estiveram presentes.” E continua, na nota enviada ao PÚBLICO: “Talvez porque se trata de uma enorme civilização de mar, elemento essencial da minha sensibilidade e do meu ser, de um pequeno país que se tornou num império do mundo – no mais lato sentido do termo e não só no político – e como poucos outros foi um teatro de encontro, e como sempre também de confronto, em suma, um palco de protagonismo no grande teatro do mundo”.
A ligação do escritor italiano a Portugal há muito tempo que é conhecida. Em 2011, Claudio Magris assinou até o prefácio da reedição da Caminho de A Viagem a Portugal, de José Saramago. Magris lembrou no prefácio que, quando se encontrou pela primeira vez com Saramago em Lisboa, foi este o livro que o Nobel da Literatura lhe ofereceu.
Nascido em Trieste em 1939, Claudio Magris tem uma extensa obra dedicada ao ensaio, ao romance e ao relato de viagens. O italiano é ainda professor de literatura alemã e tradutor, colaborando ainda com regularidade para o jornal italiano Corriere della Sera. Como diz ao PÚBLICO Guilherme d’Oliveira Martins, “além de um grande escritor, Claudio Magris é um homem da comunicação”.
O prémio agora entregue a Magris pretende anualmente distinguir um cidadão europeu que, ao longo da sua carreira, se tenha distinguido pela sua actividade de divulgação, defesa e promoção do património cultural europeu através de obras literárias, artigos, crónicas, fotos, séries documentais, filmes e programas de rádio e/ou de televisão publicados ou emitidos nos diversos meios de comunicação.
É por isso que, para Guilherme d’Oliveira Martins, “faz todo o sentido premiar Claudio Magris nesta primeira edição”. “É um escritor com uma noção de património que não se projecta apenas no passado como se estende ao presente. Tem uma escrita plural, tolerante e promotora de uma cultura europeia”, diz ao PÚBLICO o presidente do júri, composto por Antonio Foscari, Francisco Pinto Balsemão, Irina Subotic, João David Nunes, José María Ballester e Piet Jaspaert.
No comunicado, o júri destaca exactamente o conhecimento que Claudio Magris tem da Europa “enquanto espaço de diálogo e de intercâmbio cultural é muito perceptível, especialmente na sua obra sobre o Danúbio", cujo tema principal é uma incursão e um pretexto para explorar e dissertar sobre a cultura centro-europeia, "mas igualmente em toda a sua rica produção literária”.
“Através dos seus textos tem contribuído para a tolerância e a paz europeia. Magris é alguém que tem reflectido ao longo da vida sobre os temas de identidade como factores de entendimento, valores tão importantes nos dias de hoje”, acrescenta ainda ao Guilherme d’Oliveira Martins, que em Outubro entregará o prémio no valor de dez mil euros ao escritor italiano numa cerimónia que vai acontecer na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa.
Sendo a Europa um dos temas sobre os quais mais se debruça, Claudio Magris foi um dos intelectuais que no início do ano assinou o manifesto internacional chamado Europa ou o caos. Uma denúncia do vertiginoso crescimento do "cinismo", "chauvinismo" e populismo" e que começava por dizer que “a Europa não está em crise, está a morrer”.
“Não a Europa como território, naturalmente. A Europa como Ideia. A Europa como um sonho e um projecto”, diz o início do texto assinado ainda pelo escritor português António Lobo Antunes, Bernard-Henri Lévy (autor francês), Vassilis Alexakis (escritor grego), Juan Luis Cebrián (jornalista espanhol e fundador do El País), Umberto Eco (intelectual italiano), Salman Rushdie (romancista indiano), Fernando Savater (filósofo espanhol), Peter Schneider (romancista alemão), Hans Christoph Buch (jornalista e autor alemão), Julia Kristeva (filósofa búlgaro-francesa) e Gÿorgy Konrád (ensaísta húngaro).

(Artigo da autoria de Cláudia Carvalho, publicado no site do jornal Público)