sábado, 13 de agosto de 2011

Homenagem a Eduardo Lourenço

Eduardo Lourenço foi homenageado em S. Pedro de Rio Seco (Almeida) no dia 6 de Agosto de 2011.

Nessa ocasião, a intervenção de Guilherme d'Oliveira Martins foi a seguinte:

UMA HETERODOXIA FECUNDA

Celebrar é pôr em comum o que desejamos partilhar e com Eduardo Lourenço é a força da palavra, das ideias, da fecundidade do pensamento que desejamos enaltecer. Celebrar provém do grego «kele», que significava a marca dos barcos na água, tendo depois passado a referir o trilho da gente nos caminhos. Celebra-se o movimento (daí célere) e a palavra é o meio por excelência para representar o que tem vida. E podemos citar Montaigne, sempre ele, a propósito de quem cultiva o ensaio como método de interrogação e de exercício permanente da dúvida: «Je n’enseigne pas, je raconte». E é esse contar, esse dizer, esse encontrar o fio de Ariadne, esse celebrar que nos leva a entender o mundo, o acontecimento como nosso mestre interior, a vida e as pessoas, que encontramos no heterodoxo por método e atitude, por persistente desejo de partir da interrogação e da crítica para tentar chegar a busca insistente da verdade. E o que é um heterodoxo? É alguém que procura entender o mundo como resultado de vários caminhos e de várias influências. O uno e o múltiplo completam-se absolutamente.

A obra do nosso homenageado é fascinante, uma vez que procura sempre pôr-se no outro lado, assumindo individualmente a missão, que aprendeu do já citado Montaigne, de partir do eu, do incómodo eu, para o outro. E um heterodoxo lúcido é quem procura mais luz, para poder perceber as diferenças, as particularidades e a universalidade do ser.

Eduardo Lourenço é um cultor de paradoxos, ciente de que a cultura se enriquece pela capacidade de ver o mundo do avesso e de olhar para além das aparências. «É a vida mesma que nos biografa – por isso é a nossa vida – e escrevendo-se em nós nos autobiografa sem que a ninguém, salvo essa vertiginosa musa, possamos imputar tão extraordinária façanha». Com um dom de usar as palavras para melhor as adequar ao mundo da vida, o ensaísta não esconde que a essência do género que cultiva, tem a ver com a confissão na primeira pessoa do singular. «Nisso quem está a menos, somos nós, e a vida tão excessivamente a mais que só a conhecemos por nossa nos intervalos em que a temos como se de outro fosse. Só os outros nos tiram retratos e só a coleção aleatória destas vistas ocasionais dos outros sobre nós ocasionalmente arquivadas, se isso valesse a pena, para termos mais tarde e acabada a vida que não nos tem, seria então um “auto-retrato”». Em tempos, um grafólogo identificou na escrita do ensaísta «uma excessiva necessidade de outros», e o próprio, paradoxalmente, comparou-se a Judas que precisava desesperadamente de Jesus Cristo.

E aqui se sente o heterodoxo, incapaz de se deixar ficar ora na leitura racional e positiva dos acontecimentos, ora na tentação mítica ou ilusória das explicações das pessoas e do mundo. Em S. Pedro de Rio Seco está a origem dessa atitude de dúvida e de espanto. «Nós falamos sempre de nós nos textos, mas nuns mais do que noutros. Tenho consciência de que tudo me é pretexto para não falar de mim. Ou seja: para falar incessantemente de mim. É por isso que a minha escrita é lírica e passional» (JL, 6.12.86). E assistimos a uma espécie de jogo da cabra-cega em que somos e não somos e em que nos preocupamos em descobrir o mundo na perseguição dos outros. E deparamo-nos com a procura do «outro que era eu» - que vem das entranhas da terra, desta raia longínqua, aonde Eduardo regressa como um espectro de si mesmo, ou como um fantasma benigno de quem tanto gostamos. «Noutras terras os relógios das torres marcaram outro tempo. O nosso era um tempo sem tempo, alegoria a uma eternidade onde tudo quanto importava já tinha acontecido» (Público Magazine, 21.4.96). E é esse tempo sem tempo que leva Eduardo Lourenço a dizer que tudo era verdade na sua aldeia, mesmo a mentira - «três mil anos de herança», desde o neolítico. «Nunca saí desta idade média onde todas as coisas, todas as vozes, todos os rostos eram naturais» (JL, 13.4.94).

«A saída dessa aldeia foi a saída para o mundo exterior, a saída sem regresso». E a Guarda, primeiro destino, tornou-se como se fora Nova Iorque, o sinónimo do mundo – esse mundo que Thomas Mann representou na «Montanha Mágica» e que encontramos em Vergílio Ferreira. E essa adolescência vivida com naturalidade pôde assemelhar-se ao sublime. Afinal, «a interioridade é também um mito porque estávamos sempre no exterior de nós próprios» («25 Portugueses», 1999). Depois, vieram Lisboa e o Colégio Militar. Lisboa era o sítio ideal para acreditar que as caravelas continuavam a existir. E Eduardo Lourenço fez dessa experiência singular um modo de olhar a vida. Como em tudo, tira a boa lição, define distâncias, e avança para Coimbra cheio das ilusões dos dezassete anos. Na biblioteca, encontra Nietzsche, continua com Kierkegaard, entusiasma-se com Hegel e estuda Husserl. Joaquim de Carvalho e Sílvio Lima tornam-se referências que o marcam pelas ideias, pela atitude, pelo sentido crítico. Eugénio de Andrade encontra-o e lembra-o com Carlos de Oliveira («foi o Carlos que me apresentou o Eduardo»). É o tempo do neo-realismo, que Eduardo Lourenço, vindo de campo diferente, procura compreender, ressalvando a distância crítica. Há, no entanto, manifesta ambiguidade em quem se preocupa com a descoberta dos outros. O episódio da passagem da «Vértice» para o grupo neo-realista é ilustrativa da candura, e da confiança pessoal genuína em Carlos de Oliveira e Rui Feijó.

E, nessa demarcação de território, «Heterodoxia» surge como algo de natural. «Um domínio, um território. Que me pusesse fora dos campos delimitados por qualquer ortodoxia, de qualquer género que fosse» (Expresso, 16.1.88). Vitorino Nemésio dirá tratar-se de um livro «juvenil e ardente, concatenado com saber e amor da exatidão, e escrito com um nervo e uma elegância que farão inveja a muitos prosadores brevetados» (Diário Popular, 28.6.50). As reações foram contraditórias – houve quem lesse com entusiasmo e quem julgasse tratar-se de uma traição (mesmo sem profissão de fé anterior)… Hoje admiramo-nos pela clarividência, que o curso histórico confirmaria.

Em 1953 parte. Mas recusa a condição de exilado. É apenas emigrado. «Como é que um homem nascido em S. Pedro de Rio Seco pode ser outra coisa que não português?» (JL, 6.12.86). Não aceita o epíteto de estrangeirado - «Não, não aceito. Fico furioso. Fico desesperado» (Ibidem). De facto o seu método é o de olhar de dentro, mesmo estando de fora. «Exílio verdadeiro, o autor destas reflexões só o conheceu no interior do seu país» (dirá no «Labirinto»). Paris, Hamburgo, Heidelberg, Montpellier, Salvador da Bahia. «Gostei muito de estar na Alemanha. Sobretudo em Heidelberg. Mais tarde arrependi-me de não ter aí ficado…» (Expresso, 23.9.95). Depois, Grenoble, Nice, Vence. Mas E. Lourenço continua atentíssimo ao que se passa em Portugal. São fundamentais os seus textos em «O Tempo e o Modo». Sentem-se, sobretudo depois de 1958, de 1961 e de 1968, os sinais da transição, lenta e com sintomas contraditórios. «O fascismo existiu e com uma perfeição quase absoluta. Mas não existiu nunca como a maioria da oposição democrática o pensou antes do 25 de Abril, e a ela continua a referir-se uma parte da classe política triunfante, simplificando-o com a espécie de violência infantil que se reserva aos papões que deixaram de meter medo». Eduardo Lourenço procura compreender Portugal nesse momento crucial de 1974, em que a liberdade chega com o fim do império. Escreve não para recuperar o país, que não perdeu, mas para o «pensar» com a mesma paixão e sangue-frio intelectual com que pensava quando «teve a felicidade melancólica de viver nele como prisioneiro de alma».

Em «O Labirinto da Saudade», depois de concluir que a imagem ideal de nós mesmos era desadequada da realidade, diz ser chegada «a hora de fugir para dentro de casa, de nos barricarmos dentro dela, de construir com constância o país habitável de todos, sem esperar de um eterno lá-fora ou lá-longe a solução que, como no apólogo célebre, está enterrada no nosso exíguo quintal. Não estamos sós no mundo, nunca o estivemos». A conversão cultural necessária passa sempre por um olhar crítico sobre o que somos e fazemos. E é esse olhar crítico que nos conduz naturalmente aos fatores democráticos e ao humanismo universalista de Jaime Cortesão. E podemos ler a uma luz nova “A Viagem a Portugal” de José Saramago, numa continuidade ibérica (bem presente no Centro de Estudos Ibéricos), tão bem entendida na memória de Miguel de Unamuno em Salamanca.

Como todo o Ocidente tornámo-nos Todo o Mundo e Ninguém. E hoje, em tempo de crise, Portugal, Europa, mundo obrigam a repensar o destino como vontade, seguindo a lição perene de Antero e dos seus… E se falo da célebre geração de 70 é porque Eduardo Lourenço tem no seu código genético de pensador a marca fundamental de uma síntese fantástica que liga o grito dos jovens de Coimbra e do Casino Lisbonense ao impulso futurista do Orpheu, menos no imediato do que no largo prazo, de quem procurou ligar a razão e o mito, o idealismo e o sentimento trágico da vida. E, hoje, acordados à força pela crise, percebemos que esses impulsos que clamam «Indignai-vos!» podem ser úteis. E há dias Eduardo Lourenço empunhava, de novo, o estandarte europeu, sem demasiadas ilusões: «A cada um sua utopia. Utopia por utopia, como europeu desiludido mas não suicida, prefiro ainda a de uma Europa apostada em existir segundo o voto dos que há meio século a sonhavam, não como uma continuidade óbvia de um passado “europeu” sem identidade, mas como uma aposta numa Europa, empírica e voluntariosamente construída pelas “várias europas” que são cada uma das suas nações». Goethe disse-o um dia, e não devemos esquecê-lo. Não é uma pseudo-América de segunda ordem que está em causa, mas uma saída que exige compromisso e ação.

Eduardo Lourenço pensa Portugal como vontade e como comunidade plural de destinos e valores, pondo em diálogo os mitos e a razão e procurando afastar a maldição do atraso. O enigma português, em suma, não pode ser respondido ou encontrado através de qualquer simplificação – ora idealista, ora sentimentalista, ora materialista. E só a heterodoxia permite entender o nosso melting–pot, indo ao encontro da miscigenação, ligando a razão e a emoção, percebendo a alternância cíclica do otimismo e do pessimismo. É a «maravilhosa imperfeição» que o pensador cultiva, ligando-a à complexidade e à diversidade. Sá de Miranda e Herculano representam o mais vale quebrar que torcer. Fernão Mendes Pinto simboliza a imaginação fértil ao encontro do mundo. O Padre Vieira interroga a Deus e invetiva-o. Camilo e Eça retratam as diversas faces da pátria. E a utopia (não fora português o herói de Tomás Morus e também português o braço direito de Sandokan, de Emílio Salgari) torna-se um horizonte de crítica e de exigência, e nunca de fuga à realidade. E Portugal, a Europa e o Mundo ligam-se placidamente no apelo universalista da dignidade humana.

Artífice de uma heterodoxia fecunda, Eduardo Lourenço é hoje uma das consciências culturais, morais e cívicas da Europa contemporânea, ao lado de Edgar Morin, de Claudio Magris ou de Jürgen Habermas. E é com sereno orgulho que o consideramos como consciência crítica da cultura portuguesa na linha de Herculano e de Antero. Não há outra homenagem que possamos fazer. Muito obrigado Eduardo! Continuamos a contar consigo.

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