Escrevo esta crónica de Cuiabá,
capital do Estado do Mato Grosso e que é também a capital do que no Brasil se
designa por agronegócio (agricultura industrial de monocultura: soja, algodão,
milho cana do açúcar), a capital do consumo de agrotóxicos que envenenam a
cadeia alimentar e da violência contra líderes camponeses e indígenas que
defendem as suas terras da invasão e do desmatamento ilegais. Reúno-me com
líderes de movimentos sociais, um deles (indígena Xavante) chegado à reunião
clandestinamente por estar sob ameaça de morte. Deste lugar e desta reunião
torna-se particularmente claro o que está em jogo nas próximas eleições no
Brasil.
As classes populares - o vasto
grupo social de pobres, excluídos e discriminados que viu o seu nível de vida
melhorado nos últimos 12 anos com as políticas de redistribuição social
iniciadas pelo Presidente Lula e continuadas pela Presidente Dilma - estão perplexas
mas têm os pés bem assentes no chão e não me parece que sejam facilmente
iludidas. Sabem que as forças conservadoras que se opõem à Presidente Dilma
estão apostadas em recuperar o poder político que perderam há 12 anos.
Conscientes de que a época Lula transformou ideologicamente o país, não o
poderão fazer pelos meios e com os protagonistas habituais. Para pôr fim a essa
época é necessário recorrer a alguém que a evoque, Marina Silva, o desvio
contra-natura para chegar ao poder.
A pouco e pouco as classes
populares vão conhecendo o programa de Marina Silva e identificando, tanto o
que nele é transparente, quanto o que nele é mistificatório. É transparente o
regresso ao neoliberalismo que permita os lucros extraordinários decorrentes
das grandes privatizações (da Petrobras ao pré-sal) e da eliminação da
regulação macroeconómica e social do Estado. Para isso se propõe a total
independência do Banco Central e a eliminação das diplomacias paralelas
(leia-se, total alinhamento com as políticas neoliberais dos EUA e da EU). É
mistificatório o recurso a conceitos como o de "democracia de alta
intensidade" e de "democratizar a democracia" -, conceitos muito
identificados com o meu trabalho mas de que é feito um uso totalmente
oportunístico - como se fosse uma novidade política quando, de facto, do que se
trata é, no seu melhor, a continuação do que tem vindo a ser feito em alguns
estados de que é exemplo mais notável o do Rio Grande do Sul.
Acresce a tudo isto que o que há
de verdadeiramente novo na candidatura de Marina Silva significa um retrocesso
não só político como civilizacional. Trata-se da certificação da maioridade
política do evangelismo conservador. O grupo parlamentar evangélico é já hoje
poderoso no Congresso e o seu poder está totalmente alinhado, não só com o
poder económico mais predador (a bancada ruralista), a que a teologia da
prosperidade confere desígnio divino, como com as ideologias mais reacionárias
do criacionismo e da homofobia. Marina, se eleita, levará tais espantalhos
ideológicos para o Palácio do Planalto para que de lá façam a pregação do fim
da política, da ilusão da diferença entre esquerda e direita, da união entre
ricos e pobres. Tirando o verniz religioso, trata-se do regresso democrático à
ideologia da ditadura, no ano em que o Brasil celebra o mais longo e mais
brilhante período de normalidade democrática da sua história (1985-2015).
Por que estão perplexas então as
classes populares? Porque a Presidente Dilma nada faz ou diz para lhes mostrar
que está menos refém do agronegócio que Marina Silva. Nada faz ou diz para
mostrar que é urgente iniciar a transição para um modelo de desenvolvimento
menos centrado na exploração voraz dos recursos naturais que destrói o meio
ambiente, expulsa camponeses e indígenas das suas terras e assassina os que lhe
oferecem resistência. Bastaria um pequeno-grande gesto para que, por exemplo,
os povos indígenas e afrodescendentes se sentissem protegidos pela sua
Presidente: mandar publicar as portarias de identificação, de declaração e de
homologação de terras ancestrais, portarias que estão prontas, livres de
qualquer impedimento jurídico e apenas engavetadas por decisão política.
O que as classes populares e os
seus aliados parecem não saber é que não basta querer que a Presidente Dilma
ganhe as eleições. É necessário vir para a rua lutar por isso. Ao contrário, os
adversários dela sabem isso muito bem.
Crónica de Boaventura de Sousa Santos publicada na Visão de 18 de setembro de 2014
Crónica de Boaventura de Sousa Santos publicada na Visão de 18 de setembro de 2014
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