C. Crivelli, Virgem com o Menino, Santo Emídio, São Sebastião, São Roque, São Francisco de Assis e o Beato Tiago da Marca
Respondo à resposta de João Miguel Tavares (J.M.T.)
na sua crónica de 6 de Junho. Tendo que ser sintética, há, ainda assim, dois
brevíssimos pontos prévios.
1. O destaque dado pelo PÚBLICO ao caso da exportação,
talvez ilegal, da pintura de Crivelli enche-me o coração e consolida o acto da
compra diária do jornal. Apesar da alarmante perda de qualidade, é o único órgão
de comunicação em Portugal que tem (ainda?) jornalistas para a área da cultura
e que são muito boas.
2. A crónica de J.M.T. provocou-me uma estranha
impressão: num tempo em que as diferenças entre esquerda e direita são tão ténues,
confirmei que sou de esquerda. Não trompe l’oeil como ele diz, em desnecessária
chicana, mas com a convicção que a coisa pública existe, tem razão de ser e
deve ser defendida. Sobretudo quando se trata de heranças culturais.
Passo à resposta dele: ‘A verdade é que o país não
tem coisíssima nenhuma. O Crivelli é de Pais do Amaral.’
Para apoiar tão convicta “verdade”, J.M.T. cita o
artigo 62º da Constituição Portuguesa que garante o direito à propriedade privada.
Mas a verdade é que a Lei de Bases do Património Cultural, de 2001, foi
aprovada, por unanimidade, na Assembleia da República e não está ferida de
inconstitucionalidade. Ora, ela enuncia e regula o direito do Estado para
reduzir drasticamente os direitos à propriedade, em defesa de patrimónios que,
mesmo sendo propriedade privada, têm elevado valor cultural. É nesta civilizada
lei (que, com nuances diversas, existe em todos os países da Europa) que me
fundamentei para considerar que Portugal tinha e devia continuar a ter um
Crivelli. Ele é agora (ainda será?) de quem o comprou para o vender logo a
seguir, como antes fora, durante quase dois séculos, de uma família açoriana e,
antes dela, de sei lá de quantos proprietários de que gostaríamos de saber o nome,
só para sabermos mais sobre Crivelli.
Como é possível amesquinhar com tanta leviandade a
energia do capital simbólico perante a efemeridade ferida de morte do dinheiro?
As famílias italianas que permitiram a Crivelli criar são sombras, e se delas
guardamos memória é por terem sido mecenas dele. Só por isso um papa como Júlio
II me interessa. Não foi ele que criou Miguel Ângelo, antes este que lhe garantiu
a glória da encomenda. E Calouste Gulbenkian, pouco mais de meio século após a
sua morte, é definitivamente um museu.
A salvaguarda e valorização dos capitais simbólicos é
um traço constitutivo da cultura europeia. Precisa de ser alimentado pelas políticas
públicas e pela generosidade cívica. Coisas essenciais de que somos muito
carentes, como prova a presente história.
Nota final: o à-vontade com que J.M.T. se me dirige,
permite--me que lhe deixe um conselho, um bocado professoral. Precisa de
estudar a cultura das vanguardas russas das duas primeiras décadas do século
XX. E, como deve calcular, não é por causa dos “cartazes de Estaline”.
Raquel Henriques da Silva professora de História da
Arte