Foi inaugurada na quinta-feira passada no Museu Nacional de Arte Antiga
(MNAA), Lisboa,
a exposição conjunta de dois quadros de tema idêntico do pintor Lucas Cranach o Velho (c. 1472-1553), Judite com
a Cabeça de Holofernes, obra pertencente
ao Metropolitan de Nova Iorque, e Salomé com a Cabeça de S. João Baptista, este do próprio
MNAA.
Proponho aos leitores que, ao verem e compararem estes
quadros, os confrontem também com uma Judite muito famosa
pintada em 1612-13 por uma mulher, Artemisia Gentileschi (1593-c.
1656). É um quadro realista. Nem Artemisia nem outros artistas da mesma tradição
e gosto procuravam a imitação da natureza. O que queriam era forçar a emersão
de um efeito de realidade na pintura. No caso desta obra, a realidade assalta os nossos olhos pela
brutalidade gore dos gestos e
cores, e pela luz branca que destaca as figuras da escuridão do
fundo. O quadro é como que um instantâneo,
um flash de realidade. Em contrapartida, os quadros de Cranach,
pintados quase cem anos antes, são
tranquilos. Neles, a armadura simbólica das figuras
femininas contrabalança a brutalidade do gesto que praticaram,
cujo único resíduo é o pescoço decepado das suas vítimas.
Há um aspecto em que esta margem
de diferença entre o simbolismo e a realidade pode ser evidenciada de uma maneira talvez mais interessante: a expressão dos rostos femininos. Às
suas Judite e Salomé, Cranach conferiu uma pose e um sorriso que conseguem dotar de gelo e sociabilidade o contentamento pelo acto que
cometeram. Já Gentileschi deu a Judite, e também à criada que a auxilia na tarefa macabra que ambas
executam, a expressão de uma determinação firme e indiferente. A frieza, aqui, não é a da pose, é a da própria intenção. Estas
duas mulheres decapitam Holofernes como quem corta carne num
talho, lava o sangue de um lençol, degola um frango na mesa da cozinha. O
assassinato não resulta de um momento de exaltação, mas da continuidade plácida da existência. Afinal de contas, este é
um quadro realista, Artemisia era uma mulher e a realidade é que as mulheres matam sossegadamente.
Aos leitores ou leitoras mais inconformados com esta ideia, proponho que vejam na Internet
outro quadro de Gentileschi: Jael e Sísera.
E que se imaginem a
dormir... ou com o martelo e o prego nas mãos.
(autoria de Paulo Varela Gomes, publicado no Público de 27 de janeiro de 2013)
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