domingo, 10 de março de 2013

Judite, Salomé e Artemisia


Foi inaugurada na quinta-feira passada no Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA), Lisboa, a exposição conjunta de dois quadros de tema idêntico do pintor Lucas Cranach o Velho (c. 1472-1553), Judite com a Cabeça de Holofernes, obra pertencente ao Metropolitan de Nova Iorque, e Salomé com a Cabeça de S. João Baptista, este do próprio MNAA.
Proponho aos leitores que, ao verem e compararem estes quadros, os confrontem também com uma Judite muito famosa pintada em 1612-13 por uma mulher, Artemisia Gentileschi (1593-c. 1656). É um quadro realista. Nem Artemisia nem outros artistas da mesma tradição e gosto procuravam a imitação da natureza. O que queriam era forçar a emersão de um efeito de realidade na pintura. No caso desta obra, a realidade assalta os nossos olhos pela brutalidade gore dos gestos e cores, e pela luz branca que destaca as figuras da escuridão do fundo. O quadro é como que um instantâneo, um flash de realidade. Em contrapartida, os quadros de Cranach, pintados quase cem anos antes, são tranquilos. Neles, a armadura simbólica das figuras femininas contrabalança a brutalidade do gesto que praticaram, cujo único resíduo é o pescoço decepado das suas vítimas.
Há um aspecto em que esta margem de diferença entre o simbolismo e a realidade pode ser evidenciada de uma maneira talvez mais interessante: a expressão dos rostos femininos. Às suas Judite e Salomé, Cranach conferiu uma pose e um sorriso que conseguem dotar de gelo e sociabilidade o contentamento pelo acto que cometeram. Já Gentileschi deu a Judite, e também à criada que a auxilia na tarefa macabra que ambas executam, a expressão de uma determinação firme e indiferente. A frieza, aqui, não é a da pose, é a da própria intenção. Estas duas mulheres decapitam Holofernes como quem corta carne num talho, lava o sangue de um lençol, degola um frango na mesa da cozinha. O assassinato não resulta de um momento de exaltação, mas da continuidade plácida da existência. Afinal de contas, este é um quadro realista, Artemisia era uma mulher e a realidade é que as mulheres matam sossegadamente. Aos leitores ou leitoras mais inconformados com esta ideia, proponho que vejam na Internet outro quadro de Gentileschi: Jael e Sísera.
E que se imaginem a dormir... ou com o martelo e o prego nas mãos.
(autoria de Paulo Varela Gomes, publicado no Público de 27 de janeiro de 2013)

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