quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Um Dó Li Tá


"Perguntam-me muitas vezes por que motivo nunca falo do governo nestas crónicas e a pergunta surpreende-me sempre. Qual governo? É que não existe governo nenhum. Existe um bando de meninos, a quem os pais vestiram casaco como para um baptizado ou um casamento. Claro que as crianças lhes acrescentaram um pin na lapela, porque é giro
-Eh pá embora usar um pin?
que representa a bandeira nacional como podia representar o Rato Mickey"
(início da crónica de António Lobo Antunes, intitulada "Um Dó Li Tá", publicada na Visão de hoje)


quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Antígona de Sófocles

Antígona por Frederic Leighton (1830–1896)

"Se me fosse permitido escolher uma só página da literatura para lançar no espaço em testemunho da humanidade, escolheria o monólogo de Antígona, de Sófocles". Claudio Magris citado por Guilherme d'Oliveira Martins (GOM) in Jornal de Letras de hoje. Depois de citar Claudio Magris, GOM escreve "A referência a Antígona não é casual, é um símbolo de ligação entre a humanidade e a memória, entre a justiça e a verdade."
A tragédia: "Logo após a fracassada tentativa dos sete chefes contra Tebas, Creonte, rei de Tebas, decreta que os cadáveres dos inimigos da cidade ficarão insepultos e sem os ritos fúnebres de praxe (na falta deles, a alma dos mortos não seria recebida por Hades). A penalidade estipulada para quem desobedecesse o decreto era a morte.
Polinices, um dos filhos de Édipo e sobrinho de Creonte, estava entre os atacantes; o decreto de Creonte, portanto, aplica-se também a ele. Antígona, revoltada com a ordem do tio, cobre secretamente o corpo do irmão com um pouco de terra e realiza alguns dos rituais que a religião grega preconizava para os mortos.
Descoberta, Antígona confronta Creonte com coragem e altivez, e é condenada à morte. Posteriormente as profecias de Tirésias amedrontam Creonte e ele recua; ordena a imediata libertação da moça, mas ao procurá-la descobre-se que ela, seu filho Hémon e sua esposa Eurídice haviam se suicidado." (in http://greciantiga.org/arquivo.asp?num=0434)

Análise de Jefferson Luiz Maleski (transcrição parcial):
A tragédia Antígona mostra como duas opiniões opostas podem ser corretas dependendo do ângulo analisado.
Os dois filhos homens de Édipo, Etéocles e Polinice, morrem em batalha no mesmo dia. Um contra o outro. Um a favor e o outro contra a cidade de Tebas, que passa a ser governada pelo cunhado de Édipo, Creonte. Creonte então manda enterrar honrosamente ao primeiro, mas lança uma lei de que o segundo não seja velado nem sepultado e, por ser um traidor de sua pátria, quem o fizesse seria igualmente considerado traidor. Acontece que Antígona, filha de Édipo e irmã dos falecidos, infringe a lei e presta as honras fúnebres ao morto. Com este gesto é condenada à morte.
Creonte pode ser considerado por muitos como o tirano na história, mas ele fez o que qualquer governante em seu lugar faria. Ele homenageou o herói e puniu o traidor. Nada mais justo e legal aos olhos do estado. E quando Antígona infringiu a lei, mesmo que significasse punir sua sobrinha e futura nora, não poderia voltar atrás. Considerou que ele não poderia abrir uma exceção à lei somente pelas súplicas dos seus próximos. A lei era superior ao rei. “Se eu tolerar os desmandos da minha gente, perderei autoridade sobre os demais. [...] O insolente, o transgressor das leis, o que se opõe às autoridades não conte com meu aplauso. A que a cidade conferiu poder, a este importa obedecer, seja nas grandes questões seja nas justas… e até nas injustas. [...] Não há mal maior que a anarquia, ela devasta cidades, arrasa casas, aniquila a investida de forças aliadas”. A desobediência de Antígona era um ato contra o poder de Creonte, contra as leis do estado, contra o próprio direito soberano. Creonte foi firme em defender a sua posição, assim como hoje os governantes são firmes (ao menos em tese) quando aplicam a lei aos transgressores (outra tese), pois a não punição levaria ao caos e anarquia.
Por outro lado, Antígona também tinha a sua razão. Como ela poderia obedecer a lei estatal e desobedecer a lei moral, religiosa, que mandava prestar homenagens fúnebres aos parentes mortos? A grande questão era: qual das duas leis teria primazia? Ela escolheu a lei de seus deuses, de sua moral e de sua religião. Mesmo que isto significasse a morte. Ela defendeu-se perante Creonte: “Nem eu supunha que tuas ordens tivessem o poder se superar as leis não-escritas, perenes, dos deuses, visto que és mortal. Pois elas não são de ontem nem de hoje, mas são sempre vivas, nem se sabe quando surgiram. Por isso, não pretendo, por temor às decisões de algum homem, expor-me à sentença divina”. Quantos em toda história da humanidade não morreram por um ideal? Quantos hoje não morreriam quais mártires por sua crença, por sua família ou por aquilo que faz parte de sua essência como humano? Muitos o fariam, assim como Antígona.
Existe outra discussão sobre se os reais motivos tanto de Antígona quanto de Creonte não seriam políticos. Com os dois sucessores ao trono mortos (os irmãos de Antígona), o próximo herdeiro foi Creonte. Da linhagem dos Labdácidas (Laio e Édipo), sobraram somente Antígona e sua irmã, Ismene. Como Ismene cala-se a respeito do edito real, Antígona com a sua desobediência, silenciosamente incita o povo contra Creonte. Todos passam a admirar e concordar com a atitude dela em relação ao seu irmão. Começam a falar contra o governante. Creonte também pode ter tido a idéia de despoluir Tebas exterminando os descendentes incestuosos de Édipo, pois estes eram amaldiçoados. Caso o seu filho Hemon se casasse com Antígona, a maldição continuaria em seus próprios netos.
Como toda boa tragédia grega, no final muita gente morre. Mas o importante não é a contagem de corpos, antes, a discussão sobre grandes temas que envolvem moral, direito, política e filosofia. Esta discussão ainda faz parte do presente, onde vários pensadores e críticos tem analisado a obra de diferentes pontos-de-vista.

O monólogo de Antígona:
"Ó meu túmulo e meu tálamo nupcial, ó lar cavado na rocha que me guardarás prisioneira para sempre! Para aí avanço ao encontro dos meus, de que Perséfone recebeu já o maior número entre os mortos; dentre eles, restava eu, em muito a mais perversa; a caminho já vou, antes que se tivesse cumprido o destino da minha vida. Espero, porém, confiadamente, que, ao chegar, serei bem-vinda para o meu pai, e querida para ti, minha mãe, e cara a ti, meu irmão, pois, quando morrestes, eu, querido, pois, quando morrestes, eu, pelas minhas próprias mãos, vos lavei e adornei, e derramei sobre o túmulo as libações. E agora, Polinices, por ter dado sepultura ao teu corpo, obtenho esta recompensa.
E contudo, eu soube bem honrar-te, aos olhos dos que pensam bem. Pois nem que eu fosse uma mãe com filhos, nem que tivesse um marido que apodrecesse morto, eu teria empreendido estes trabalhos contra o poder da cidade. Mas em atenção a que princípio é que eu digo isto? Se me morressem esposo, outro haveria, e teria um filho de outro homem, se houvesse perdido um. Mas estando pai e mãe ocultos no Hades, não poderá germinar outro irmão. Por eu ter preferido honrar-te, devido a este princípio, é que eu apareci aos olhos de Creonte como culpada e ousada, ó meu caro irmão! E agora ele tem-me nas suas mãos, e leva-me, privada de tálamo, privada do hirmeneu, sem me terem tocado em sorte os esponsais nem a criação de filhos, mas vai esta infeliz, abandonada pelos amigos, ainda viva, para os sepulcros dos mortos. Qual foi a lei divina que eu transgredi? Porque Heitor-de eu, aí de mim, olhar ainda para os deuses? Quem invocarei para me valer, já que por usar de piedade fiquei possuída de impiedade?
Mas se está pena é bela aos olhos dos deuses, só depois de a termos sofrido poderemos reconhecer que errámos. Se, porém, são eles que erram, que eles não sofram maiores males do que aqueles a que me forçaram, fora da lei."

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Quero fazer contigo o que a primavera faz com as cerejeiras

Brincas todos os dias com a luz do universo. 
Subtil visitadora, chegas na flor e na água. 
És mais do que a pequena cabeça branca que aperto 
como um cacho entre as mãos todos os dias.


Com ninguém te pareces desde que eu te amo. 
Deixa-me estender-te entre grinaldas amarelas. 
Quem escreve o teu nome com letras de fumo entre as estrelas do sul?


Ah deixa-me lembrar como eras então, quando ainda não existias. 


Subitamente o vento uiva e bate à minha janela fechada. 
O céu é uma rede coalhada de peixes sombrios. 
Aqui vêm soprar todos os ventos, todos. 
Aqui despe-se a chuva.


Passam fugindo os pássaros.
O vento. O vento.
Eu só posso lutar contra a força dos homens.
O temporal amontoa folhas escuras
e solta todos os barcos que esta noite amarraram ao céu.


Tu estás aqui. Ah tu não foges. 
Tu responder-me-ás até ao último grito. 
Enrola-te a meu lado como se tivesses medo. 
Porém mais que uma vez correu uma sombra estranha pelos teus olhos.


Agora, agora também, pequena, trazes-me madressilva, 
e tens até os seios perfumados. 
Enquanto o vento triste galopa matando borboletas 
eu amo-te, e a minha alegria morde a tua boca de ameixa.


O que te haverá doído acostumares-te a mim, 
à minha alma selvagem e só, ao meu nome que todos escorraçam. 
Vimos arder tantas vezes a estrela d'alva beijando-nos os olhos 
e sobre as nossas cabeças destorcerem-se os crepúsculos em leques rodopiantes.
As minhas palavras choveram sobre ti acariciando-te. 
Amei desde há que tempo o teu corpo de nácar moreno. 
Creio-te mesmo dona do universo. 
Vou trazer-te das montanhas flores alegres, «copihues», 
avelãs escuras, e cestos silvestres de beijos. 


Quero fazer contigo 
o que a primavera faz com as cerejeiras.


(Pablo Neruda in "Vinte poemas e uma canção desesperada", tradução de Fernando Assis Pacheco, Poema 14)

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

Escritaria. Mário de Carvalho

De hoje até domingo decorre a Escritaria, em Penafiel. Este ano, o autor homenageado é Mário de Carvalho. Para falar da sua obra, além do próprio, estarão lá: Lídia Jorge, Ricardo Araújo Pereira, Gonçalo M. Tavares, José Carlos Vasconcelos.

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Kierkegaard. Exposição na Biblioteca Nacional


A mostra reúne bibliografia publicada em Portugal de e sobre Søren Kierkegaard (1813-1855) e um conjunto de 16 painéis descritivos da sua vida e obra, que assinalam e celebram o bicentenário do seu nascimento. Além da Biblioteca Nacional de Portugal e das instituições culturais dinamarquesas responsáveis pela sua conceção, tuteladas pelos Ministérios da Cultura e dos Negócios Estrangeiros da Dinamarca, a mostra conta com o apoio da Embaixada da Dinamarca em Lisboa e do Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa.

A obra de Søren Kierkegaard — muita dela escrita sob pseudónimo — atingiu, em vida do autor, um escasso número de leitores. Pelo contrário, a partir do início do séc. XX, a sua obra passou a ser objeto de intensa e generalizada investigação. Kierkegaard exerceu uma influência significativa em filósofos de várias escolas e nacionalidades, entre os quais se contam Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir e Albert Camus, e também Miguel de Unamuno, Martin Heidegger, Karl Jaspers e Ludwig Wittgenstein, e, na atualidade, por exemplo, Alain Badiou ou Slavoj Žižek. No campo da teologia, Kierkegaard marcou, entre outros, Dietrich Bonhoeffer, Paul Tillich, Karl Bath e Rudolf Bultmann. No campo literário, o impacto de Kierkegaard é reconhecível, numa primeira geração, em Henrik Ibsen, August Strindberg e Franz Kafka, mas hoje em dia estende-se a autores de muitas outras literaturas.

Em Portugal, durante o séc. XX, a receção de Søren Kierkegaard caracteriza-se por uma investigação de iniciativa marcadamente individual ao longo de sucessivas gerações de tradutores e de filósofos. Distinguem-se inicialmente Adolfo Casais Monteiro (1908-1972), José Marinho (1904-1975), e Delfim Santos (1907-1966), cuja influência se desenvolveu tanto nos círculos literários como académicos. Eduardo Lourenço (n.1923) é a figura dominante na geração que acolhe criticamente o Existencialismo. Merece também destaque o fluxo ensaístico que veio a lume durante a década de 60, revelador da presença contínua da filosofia de Kierkegaard na produção literária e filosófica em Portugal. É a primeira década do séc. XXI que anuncia um novo fôlego na investigação kierkegaardiana, que surge agora mais enraizada na universidade. Publicaram-se as primeiras traduções a partir do original dinamarquês, acompanhadas pela realização regular de conferências e pela publicação de estudos sobre a obra do autor, num conjunto de realizações que assinala inequivocamente uma mudança de paradigma na receção portuguesa do filósofo dinamarquês.
(do site da Biblioteca Nacional)