terça-feira, 23 de abril de 2013

Caminho da manhã


Vais pela estrada que é de terra amarela e quase sem nenhuma sombra. As cigarras cantarão o silêncio de bronze. À tua direita irá primeiro um muro caiado que desenha a curva da estrada. Depois encontrarás as figueiras transparentes e enroladas; mas os seus ramos não dão nenhuma sombra. E assim irás sempre em frente com a pesada mão do Sol pousada nos teus ombros, mas conduzida por uma luz levíssima e fresca. Até chegares às muralhas antigas da cidade que estão em ruínas. Passa debaixo da porta e vai pelas pequenas ruas estreitas, direitas e brancas, até encontrares em frente do mar uma grande praça quadrada e clara que tem no centro uma estátua. Segue entre as casas e o mar até ao mercado que fica depois de uma alta parede amarela. Aí deves parar e olhar um instante para o largo pois ali o visível se vê até ao fim. E olha bem o branco, o puro branco, o branco da cal onde a luz cai a direito. Também ali entre a cidade e a água não encontrarás nenhuma sombra; abriga-te por isso no sopro corrido e fresco do mar. Entra no mercado e vira à tua direita e ao terceiro homem que encontrares em frente da terceira banca de pedra compra peixes. Os peixes são azuis e brilhantes e escuros com malhas pretas. E o homem há-de pedir-te que vejas como as suas guelras são encarnadas e que vejas bem como o seu azul é profundo e como eles cheiram realmente, realmente a mar. Depois verás peixes pretos e vermelhos e cor-de-rosa e cor de prata. E verás os polvos cor de pedra e as conchas, os búzios e as espadas do mar. E a luz se tornará líquida e o próprio ar salgado e um caranguejo irá correndo sobre uma mesa de pedra. À tua direita então verás uma escada: sobe depressa mas sem tocar no velho cego que desce devagar. E ao cimo da escada está uma mulher de meia idade com rugas finas e leves na cara. E tem ao pescoço uma medalha de ouro com o retrato do filho que morreu. Pede-lhe que te dê um ramo de louro, um ramo de orégãos, um ramo de salsa e um ramo de hortelã. Mais adiante compra figos pretos: mas os figos não são pretos: mas azuis e dentro são cor-de-rosa e de todos eles corre uma lágrima de mel. Depois vai de vendedor em vendedor e enche os teus cestos de frutos, hortaliças, ervas, orvalhos e limões. Depois desce a escada, sai do mercado e caminha para o centro da cidade. Agora aí verás que ao longo das paredes nasceu uma serpente de sombra azul, estreita e comprida. Caminha rente às casas. Num dos teus ombros pousará a mão da sombra, no outro a mão do Sol. Caminha até encontrares uma igreja alta e quadrada.
Lá dentro ficarás ajoelhada na penumbra olhando o branco das paredes e o brilho azul dos azulejos. Aí escutarás o silêncio. Aí se levantará como um canto o teu amor pelas coisas visíveis que é a tua oração em frente do grande Deus invisível.
Sophia de Mello Breyner Andresen in Livro Sexto, 1962

segunda-feira, 8 de abril de 2013

Passos: balla, balla, ballerino


A reação de Pedro Passos Coelho à decisão do Tribunal Constitucional faz lembrar a música de Lucio Dalla, "Balla, balla, ballerino".
Passos não consegue dançar em cima das ondas ou no planalto entre duas montanhas. Para ele, a decisão do TC é uma pistola apontada à cabeça - e, em particular, à sua visão do Estado e da economia.
Por isso, ameaça punir-nos com mais cortes na educação, na saúde e nas prestações sociais, como retaliação pela decisão do TC.
Mas o que Passos não explica é porque os cortes têm de ser sempre nestas áreas, ignorando a redução do número de municípios ou os cortes na área da defesa, que estão inscritos no memorando de entendimento, mas que o Governo deixou cair.  
Mas o que Passos não explica é porque não consegue acomodar os 1300 milhões de despesa a mais que decorrem da decisão do TC no corte de 4000 milhões da despesa pública que disse que estava a preparar.
Mas o que Passos não explica é porque razão estes 1300 milhões de despesa a mais são assim tão dramáticos - quando, no ano passado, a derrapagem orçamental foi o triplo e o Governo não manifestou nenhuns sinais de pânico.
Mas o que Passos não consegue explicar é porque o Orçamento deste ano foi elaborado com base na previsão surrealista de uma recessão de 1% - e três meses depois o próprio Governo reconhecia que seria mais do dobro. E, como é óbvio, este descalabro nada tem a ver com a decisão do TC.
Na declaração de Passos, há uma coisa positiva: não vai abdicar. Faz muito bem. Foi eleito para quatro anos e deve governar durante esse período. Eleições agora seriam um desastre para o país, já que a solução que daí saíria seria bem pior do que aquela que existe atualmente.
Por isso, como diz Lucio Dalla, o genial criador de "Caruso", "balla balla ballerino tutta la notte e al matino". Ou seja, aguente. O país está farto de primeiros-ministros que abandonam o barco no meio da tempestade, invocando desculpas esfarrapadas.