domingo, 12 de outubro de 2014

Patrick Modiano


Confesso que não conhecia Patrick Modiano. Nas vésperas da revelação do premiado com o Nobel da Literatura 2014, o jornal El País anunciava os favoritos: Haruki Murakami, Milan Kundera e Philip Roth.
A vitória de Patrick Modiano surpreendeu todos, o próprio incluído que afirmou: “Nunca pensei que isto me pudesse acontecer, estou muito tocado, cheio de emoções”.
O Comité tem-nos habituado a estas surpresas e ainda bem. Penso que mais do que premiar uma carreira, o Nobel deve servir para dar notoriedade a escritores que merecem essa notoriedade e ainda a não possuem.
A vontade de conhecer Modiano fez-me ir à livraria procurar por um livro seu. Não havia. Fui então à Biblioteca Pública. Lá encontrei "Um circo que passa", livro escrito em 1992. Li-o ontem. Uma escrita acessível. Um quase policial. Dado o tema tratado, seria de esperar um pouco de sensualidade, mas nada. Lá estava a "arte da memória". Uma história muito bem contada. 
Um pequeno excerto do livro: “Hoje, revejo essa cena à distância. Por detrás do vidro de uma janela, numa luz difusa, eu distingo um loiro cinquentão em roupão de escocês, uma rapariga de casaco de peles e um jovem... A lâmpada, no pé do candeeiro, era demasiado fraca. Se eu pudesse voltar atrás no tempo e regressar àquele quarto, poderia trocar a lâmpada. Mas sob uma luz mais forte, tudo se poderia dissipar.”
O original, em francês, está acessível na net:
http://www.ae-lib.org.ua/texts/modiano__un_cirque_passe__fr.htm

sábado, 4 de outubro de 2014

"a Europa precisa de ter uma discussão séria sobre os seus valores" Pamuk

"Na sua primeira visita oficial a Portugal, para receber um prémio que reconhece o seu contributo para o património cultural europeu, o Nobel da Literatura deixou um recado: “A herança cultural europeia não se deve limitar à preservação dos seus monumentos, mas também à preservação dos seus valores fundamentais”

O escritor turco Orhan Pamuk defendeu esta sexta-feira em Lisboa que “a Europa precisa de ter uma discussão séria sobre os seus valores fundamentais”. O Nobel da Literatura de 2006, autor de uma obra literária sobre a procura de uma identidade turca, dividida entre o Ocidente e o Oriente, entre modernidade europeia e tradição muçulmana, recebeu esta noite o Prémio Europeu Helena Vaz da Silva para a Divulgação do Património Cultural na Fundação Calouste Gulbenkian, com um discurso em que prestou tributo à tradição cultural europeia, mas que terminou com uma nota crítica.
“A herança cultural europeia não se deve limitar à preservação dos seus monumentos, mas também à preservação dos seus valores fundamentais”, disse o escritor, na sua primeira visita oficial a Portugal. “E temos de ter uma discussão séria sobre esses valores fundamentais.”
Pareceu claro que era um recado para a Europa – não por acaso, o presidente da Comissão Europeia, Durão Barroso, estava presente na primeira fila – embora Pamuk não tenha especificado o que queria dizer com isso, talvez para não correr o risco de soar pouco diplomático. Mas o que Pamuk quis dizer terá talvez a ver com o que respondeu numa entrevista em Dezembro do ano passado, quando um jornalista colombiano lhe perguntou se se sentia europeu. “Não sei. Não penso nesses termos. Em primeiro lugar, sinto-me turco. E um turco tanto se sente europeu como não europeu. Acredito numa Europa que não se baseia no cristianismo, mas no Renascimento, na modernidade, na ‘liberdade, igualdade, fraternidade’. Essa é a minha Europa. Acredito nessas coisas e quero fazer parte delas. Mas se a Europa é a civilização cristã, lamento: nós, turcos, não queremos entrar.”
No debate sobre a hipotética entrada da Turquia na União Europeia, Pamuk – um turco cosmopolita e laico que se autodefine como um “muçulmano, mas apenas no sentido cultural” – emergiu como um intérprete do diálogo entre civilizações. Daniel Cohn-Bendit disse que foi Pamuk quem o ajudou a “perceber a importância de a Turquia aderir à União Europeia”. Até mesmo o ex-Presidente americano George Bush se referiu à obra do escritor como “uma ponte entre culturas”, notando que ela mostra como “pessoas noutros continentes e civilizações” são “exactamente como nós”.

Em defesa das pessoas normais
Atribuído pela primeira vez no ano passado ao escritor italiano Claudio Magris, cuja obra é notória pela sua deambulação cultural (como a de Pamuk), o Prémio Europeu Helena Vaz da Silva, no valor de dez mil euros, é uma iniciativa da organização europeia de defesa do património Europa Nostra em parceria com o Centro Nacional de Cultura e o Clube Português de Imprensa, com o objectivo de distinguir um cidadão europeu que, ao longo da sua carreira, tenha contribuído para a divulgação, defesa e promoção do património cultural e dos ideais europeus.
O presidente do Centro Nacional de Cultura e membro do júri, Guilherme de Oliveira Martins, notou que a atribuição do prémio a Pamuk teve em conta “o cidadão apaixonado pela defesa do património cultural, mais do que o grande romancista”, embora o seu discurso tenha sido dominado por referências e citações constantes do último romance do escritor, O Museu da Inocência (ed. Presença), publicado em 2008.
Pamuk confessou-se “lisonjeado e honrado” pela atribuição do prémio, que lhe foi entregue pelo secretário de Estado da Cultura, Jorge Barreto Xavier.
Falando em inglês, o escritor lembrou como concebeu um romance e um museu ao mesmo tempo, referindo-se a O Museu da Inocência, ficção sobre um homem que colecciona todos os objectos tocados pela mulher que amou e que perdeu e ao edifício com o mesmo nome que abriu em Istambul, a cidade onde nasceu e onde vive, com objectos que foi juntando para o processo de escrita do livro e que é hoje, também, um museu sobre a vida quotidiana da classe média turca na segunda metade do século XX.
“Os verdadeiros romances centram-se em pessoas normais, no seu dia-a-dia”, disse. Com a entrada na modernidade, a literatura deixou de se interessar pelos reis e poderosos para se ocupar da história de pessoas simples, como se fossem reis – Joyce fê-lo em Ulisses, notou. Pamuk defendeu que os museus deviam fazer o mesmo. “Deixem de prestar atenção à nação e aos reis e dediquem-se aos pequenos detalhes das nossas vidas quotidianas. É por isso que defendo que precisamos de pequenos museus”, disse.

Nesta segunda edição do Prémio Europeu Helena Vaz da Silva, foi também atribuído um prémio especial de carreira ao historiador de arte José-Augusto França por ter “fomentado a tomada de consciência e o sentimento de orgulho relativamente à arte portuguesa, relacionando-a com a cultura europeia e mundial”. O júri distinguiu ainda o jornalista holandês Pieter Steinz com uma menção especial pela criação de uma enciclopédia de ícones culturais europeus."
artigo de Kathleen Gomes publicado no Público de hoje

Oliveira da Figueira

Oliveira da Figueira é personagem secundária em vários livros da série "As Aventuras de Tintim" de Hergé. Aparece pela primeira vez em "Os Charutos do Faraó. Comerciante, simpático, falador, fura-vidas, lá se vai desenrascando, nem que para isso tenha de aprender a falar árabe. Oliveira da Figueira entra também nos livros "Tintim no País do Ouro Negro " e "Carvão no Porão". 
Guilherme d'Oliveira Martins (GOM) dedica a Oliveira da Figueira o último capítulo do seu livro de viagens, saído no mês passado, intitulado "Na Senda de Fernão Mendes. Percursos Portugueses no Mundo". Este livro é consequência das viagens que têm sido promovidas pelo Centro Nacional de Cultura, de que GOM é Presidente, viagens com o título genérico "Os portugueses ao encontro da sua história". Uma frase extraída do livro, cujo título é uma homenagem a Fernão Mendes Pinto: "Se Sophia diz que vivemos "de pouco pão e de luar" é porque a viagem nos anima, para que possamos combater a mediocridade e a indiferença." A erudição de GOM também fica reforçada por esta incursão no mundo da banda desenhada.

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

O Museu da Inocência

A imaterialidade tem um museu em Istambul. Chama-se "O Museu da Inocência" e existe desde 2012. O museu homenageia as personagens do romance "O Museu da Inocência" de Orhan Pamuk, prémio Nobel da Literatura em 2006. Ao mesmo tempo que escrevia o romance, Pamuk ia guardando os objetos que nele descrevia. Esses mesmos objetos estão expostos no museu. Por exemplo, estão lá: um brinco e um vestido de Fusun (a personagem amada por Kemal) e também nele foi reconstituído o quarto onde Kemal (o personagem principal) contou a sua história a Pamuk.
O museu dá um testemunho do que era a vida e a cultura na Istambul do fim do século XX.
Informação mais detalhada em:
http://arteref.com/gente-de-arte/museu-da-inocencia-orhan-pamuk/


quinta-feira, 2 de outubro de 2014

O que está em jogo no Brasil


Escrevo esta crónica de Cuiabá, capital do Estado do Mato Grosso e que é também a capital do que no Brasil se designa por agronegócio (agricultura industrial de monocultura: soja, algodão, milho cana do açúcar), a capital do consumo de agrotóxicos que envenenam a cadeia alimentar e da violência contra líderes camponeses e indígenas que defendem as suas terras da invasão e do desmatamento ilegais. Reúno-me com líderes de movimentos sociais, um deles (indígena Xavante) chegado à reunião clandestinamente por estar sob ameaça de morte. Deste lugar e desta reunião torna-se particularmente claro o que está em jogo nas próximas eleições no Brasil.
As classes populares - o vasto grupo social de pobres, excluídos e discriminados que viu o seu nível de vida melhorado nos últimos 12 anos com as políticas de redistribuição social iniciadas pelo Presidente Lula e continuadas pela Presidente Dilma - estão perplexas mas têm os pés bem assentes no chão e não me parece que sejam facilmente iludidas. Sabem que as forças conservadoras que se opõem à Presidente Dilma estão apostadas em recuperar o poder político que perderam há 12 anos. Conscientes de que a época Lula transformou ideologicamente o país, não o poderão fazer pelos meios e com os protagonistas habituais. Para pôr fim a essa época é necessário recorrer a alguém que a evoque, Marina Silva, o desvio contra-natura para chegar ao poder.
A pouco e pouco as classes populares vão conhecendo o programa de Marina Silva e identificando, tanto o que nele é transparente, quanto o que nele é mistificatório. É transparente o regresso ao neoliberalismo que permita os lucros extraordinários decorrentes das grandes privatizações (da Petrobras ao pré-sal) e da eliminação da regulação macroeconómica e social do Estado. Para isso se propõe a total independência do Banco Central e a eliminação das diplomacias paralelas (leia-se, total alinhamento com as políticas neoliberais dos EUA e da EU). É mistificatório o recurso a conceitos como o de "democracia de alta intensidade" e de "democratizar a democracia" -, conceitos muito identificados com o meu trabalho mas de que é feito um uso totalmente oportunístico - como se fosse uma novidade política quando, de facto, do que se trata é, no seu melhor, a continuação do que tem vindo a ser feito em alguns estados de que é exemplo mais notável o do Rio Grande do Sul.
Acresce a tudo isto que o que há de verdadeiramente novo na candidatura de Marina Silva significa um retrocesso não só político como civilizacional. Trata-se da certificação da maioridade política do evangelismo conservador. O grupo parlamentar evangélico é já hoje poderoso no Congresso e o seu poder está totalmente alinhado, não só com o poder económico mais predador (a bancada ruralista), a que a teologia da prosperidade confere desígnio divino, como com as ideologias mais reacionárias do criacionismo e da homofobia. Marina, se eleita, levará tais espantalhos ideológicos para o Palácio do Planalto para que de lá façam a pregação do fim da política, da ilusão da diferença entre esquerda e direita, da união entre ricos e pobres. Tirando o verniz religioso, trata-se do regresso democrático à ideologia da ditadura, no ano em que o Brasil celebra o mais longo e mais brilhante período de normalidade democrática da sua história (1985-2015).
Por que estão perplexas então as classes populares? Porque a Presidente Dilma nada faz ou diz para lhes mostrar que está menos refém do agronegócio que Marina Silva. Nada faz ou diz para mostrar que é urgente iniciar a transição para um modelo de desenvolvimento menos centrado na exploração voraz dos recursos naturais que destrói o meio ambiente, expulsa camponeses e indígenas das suas terras e assassina os que lhe oferecem resistência. Bastaria um pequeno-grande gesto para que, por exemplo, os povos indígenas e afrodescendentes se sentissem protegidos pela sua Presidente: mandar publicar as portarias de identificação, de declaração e de homologação de terras ancestrais, portarias que estão prontas, livres de qualquer impedimento jurídico e apenas engavetadas por decisão política.
O que as classes populares e os seus aliados parecem não saber é que não basta querer que a Presidente Dilma ganhe as eleições. É necessário vir para a rua lutar por isso. Ao contrário, os adversários dela sabem isso muito bem.
Crónica de Boaventura de Sousa Santos publicada na Visão de 18 de setembro de 2014

domingo, 21 de setembro de 2014

A lição escocesa:o abanão na Europa estabelecida

"Ao fim de quatro anos de pensamento único, “inevitável”, que varreu tudo, na política, da direita à esquerda, e na cabeça colocou os que perdiam a pensar como os que ganhavam, matou a revolta e a crítica."
               
"O referendo escocês, mesmo com o resultado que teve, é um bom exemplo de como é errado pensar como se pensa por cá: o que está tem muita força e o que está não muda, é “inevitável”. O “não” vitorioso não vai impedir que muita coisa mude, e o “sim” derrotado vai garanti-lo. Os escoceses deram um exemplo notável da introdução de novidade, de surpresa, daquilo que é a “matéria” da história. Querem um exemplo do “pensar out of the box”, o apelo estandardizado de qualquer seminário para gestores, empreendedores, criativos, publicitários? Aqui o têm. Não é comum, nem fácil e comporta riscos, mas é vivo, logo muda. Aye.
Ao pensar único por cá, o mais “in the box” que se pode imaginar, chamem-lhe realismo, que não é; conservadorismo, que não é, - é mais preguiça de pensar e aceitação do direito dos mais fortes a pensar por nós. Ao fim de quatro anos de pensamento único, “inevitável”, que varreu tudo, na política, da direita à esquerda, e na cabeça colocou os que perdiam a pensar como os que ganhavam, matou a revolta e a crítica, gerou a apatia e a submissão. Ah! Homens de saias, monstros de Loch Ness, castelos assombrados, lagos sinistros, encarnações de William Wallace, venham comemorar o Hogmaney por cá que bem precisamos de ar fresco, bravura e alegria de sermos senhores de nós mesmos. Aye.
A ideologia do “ajustamento”, funcionou como um deserto que avança, enchendo tudo de areia e atrito. A “história” ideológica que por cá mostra o soçobrar do pensamento é esta: Portugal faliu no final do governo Sócrates devido ao despesismo socialista, não apenas devido à “má despesa pública” de Sócrates, mas devido ao socialismo, social-democracia, keynesianismo, investimentismo público, ou qualquer ismo dessa categoria. Ou seja, não se trata apenas de apresentar uma realidade, mas de avançar com uma explicação ideológica para ela. Confrontado com esta situação de bancarrota, sem liberdade nem independência face aos credores e dependendo da benevolência dos mercados, os números do défice (mais) e os da dívida (menos) passaram a ser o tema central do discurso, de todo o discurso, económico, social, político e ideológico. Deixou de haver política, porque deixou de haver “alternativas”: o curso das coisas tornou-se inevitável. Ou melhor, o défice a dívida sugaram como um buraco negro tudo o resto. Eles eram a natureza das coisas, sólida, dura, permanente. Eram como a gravidade, o atractor universal. Nay.
Quem não queria partir daqui e chegar aqui, estava a filiar-se na escola ou “dos que não percebiam que o mundo tinha mudado”, ou dos partidários do “pensamento mágico” que pensavam que, com uma varinha mágica, resolviam tudo, mesmo os dois Mostrengos que se erguiam entre o Terreiro do Paço e os mandantes dos credores, o défice e a dívida. Eram desqualificados, “velhos do Restelo”, “socráticos”, ultrapassados e empecilhos. Para os que ainda podiam influenciar perversamente os jovens, como alguns professores reformados e jubilados que davam aulas de graça, e que eram portadores do perigoso pensamento anti-inevitabilidade, uma lei iníqua proibiu-os de o fazerem. A capa do livro de Camilo Lourenço chamado “Saiam da frente!” fazia a lista dos culpados – Soares, Sócrates, Mário Nogueira, Jerónimo de Sousa, Manuela Ferreira Leite, - “aqueles que levaram Portugal á falência”, “três vezes” – é “altura de os afastar”. Que tal uma injecção atrás da orelha, para tão perniciosa gente? Havia que abrir caminho para os Maçãs, os Poiares, os Lourenços, os César das Neves, os Joaquim Aguiar, os articulistas da imprensa económica, os jovens lobos do Compromisso Portugal, dos blogues governamentais e do Observador. Nay.
Como um dos corifeus deste pensamento salvífico, Maçãs, escreveu, era tempo de acabar com o “socialismo” que, com excepção dos anos de Passos Coelho, tinha sempre dominado em Portugal. Com uma técnica estalinista da história, a amálgama, juntava-se no mesmo saco Sócrates e Manuela Ferreira Leite que lhe tinha dito “não há dinheiro”, para ouvir Passos Coelho, então desenvolvimentista e keynesiano, lhe criticar o reaccionarismo da afirmação. Todos são culpados, porque toda a história desde o 25 de Abril é apenas um longo caminho de “socialismo” de “vida acima das suas posses”, um percurso que nasce do mal, o 25 de Abril, e continua pelo mal, o “socialismo” de todos até à “revolução” Passos Coelho. Nay.
Se Sócrates está lá bem, Soares está lá pela sua intransigência face a este governo, Nogueira, porque os sindicatos são o inimigo a abater, Jerónimo, porque haver um partido comunista legal e activo é um perigo público, Cavaco Silva porque é suspeito de keynesianismo, e Manuela Ferreira Leite, porque lembra que o PSD foi em tempos um partido reformador e social-democrata e algumas avis raras não se têm calado e subjugado como muitos fizeram. Ou seja, tudo o que aparece como empecilho ao glorioso caminho da “libertação da economia”, vai para o índex. Nay.
O “ajustamento” foi a palavra encontrada para, na política, - que deixou de poder ser nomeada como política, - se poder voltar ao estado natural das coisas, que o “socialismo” de Cavaco Silva a Sócrates, tinha perturbado, levando o país a “viver acima das suas posses”. Agora vinha a factura para regressarmos ao estado natural de que nunca devíamos ter saído. Qual era esse estado natural? A pobreza atávica de Portugal, a mesma que Salazar apreciava como geradora de virtudes. Quem retirou Portugal desse estado natural, de forma esbanjadora, perdulária, despesista, viciosa? A classe média criada depois do 25 de Abril, os funcionários públicos, os professores, os trabalhadores das empresas públicas, os militares, os enfermeiros, o estado social, o alvo a abater. A esse alvo acrescentava-se a economia expendable, as pequenas e médias empresas dadoras de emprego, na construção civil, na restauração, etc., o símbolo do atraso do sistema económico português que deveria ter dot.coms em vez de cafés da esquina. Naturalmente as “jovens” desempoeiradas que pegavam na receita da tia e começaram a vender compotas na Internet, passavam ao modelo do “empreendorismo”. Nay.
Qual é o remédio para repôs a virtude e combater o vício? “Ajustar”, uma tarefa que passa por empobrecer quem ainda tinha alguma coisa (a classe média), alterar os equilíbrios sociais que garantiam alguma distribuição (através do ataque aos chamados “direitos adquiridos”), diminuir o valor do trabalho, impor uma violenta carga fiscal sobre o trabalho. O empobrecimento, que os nossos governantes com todo o à vontade tratam de “efeito colateral”, algo de tão inevitável que não vale a pena defrontá-lo, era na verdade um mecanismo estrutural, para voltarmos a esse estado natural a partir do qual se podia esperar uma “economia sã”. Nay.
Podia continuar por aqui adiante, mas cansa. Cansa ouvir isto, como me cansa a mim escrevê-lo. Para sair disto, vale a pena aprender com os escoceses. Vejam lá o que fizeram esses malvados. Deram alento a uma ideia que parecia morta, marginal, apenas circulando pelas franjas da vida política, a de uma Escócia independente. Na última década, essa ideia, a que ninguém atribuía importância, tão grande era a inevitabilidade do Reino Unido, começou a crescer, impôs mais autonomia e tornou central o debate da independência. Várias coisas ajudaram, a tradição operária escocesa, a preservação da cultura nacional, e a afronta que alguns governantes ingleses, como Thatcher, fizeram aos rudes highlanders, que lá por usarem saias, nem por isso deixam de ser homens e mulheres orgulhosos num mundo europeu demasiado submisso. E quando os sins e os nãos se aproximaram perigosamente, soaram os alarmes por toda essa Europa burocrática, estabelecida, convencida e em grande parte inútil. Aye.

A independência escocesa teria problemas, - por mim se a maioria dos escoceses quer ficar no Reino Unido, um sítio particularmente civilizado da Europa, muito bem, - mas em bom rigor qual era o mal de serem independentes? Que ameaças traria à Europa? Traria à Espanha por causa da Catalunha, mas pensam que o “não“ escocês resolve o problema? Traria à Ucrânia oriental, mas a situação de independência de facto existe e só em termos geopolíticos se pode explicar o grande amor europeu à integralidade territorial da Ucrânia, que não se aplica à Moldova, nem à Geórgia, nem à Arménia. As instituições europeias hoje representam uma espécie de polícia da boa economia do “ajustamento”, da boa política do establishment, da boa área de influência, a alemã. Os escoceses mandaram-lhe um valente abanão, vindo da história, ou seja da surpresa, da vida, da liberdade. E não pediram autorização a ninguém. Nem a Bruxelas, nem a Londres, nem a Berlim.  Aye, aye."
José Pacheco Pereira, no Público de ontem.

segunda-feira, 23 de junho de 2014

Mario Vargas Llosa: “Esta realidad puede llegar a ser el infierno”

Foto de Samuel Sánchez
¿Qué papel adopta cuando habla con jóvenes? El de un curioso. El abismo generacional es el más grande de la historia. Los jóvenes están más en las pantallas; ahí su desenvoltura es imbatible. Nosotros seguimos siendo librescos.
¿Qué más cambió? Se hacen adultos muy pronto. Frente al sexo, por ejemplo. Es una libertad que los hace más sanos de lo que fuimos nosotros. Los tabúes y las prohibiciones hicieron que el sexo fuera traumático.
¿Qué entiende ahora que no hubiera entendido de joven? La igualdad entre el hombre y la mujer. Los jóvenes ahora son más conscientes de eso y nosotros estábamos bastante ciegos. El sexo los hace más libres. Aunque esa libertad les hace perder más rápido esa inocencia que poco a poco iba fomentando el amor y enriqueciendo la relación sentimental.
¿Cuándo perdió usted la inocencia? Entre los diez y los once años. Yo no sabía cómo venían los niños al mundo; que los trajera la cigüeña me parecía algo fantasioso; no sospechaba el tipo de vida sexual que estaba en el origen de la procreación.
¿Y qué otros descubrimientos naturales lo conmovieron? El amor. Fue fundamental y lo descubrí antes que el sexo. Mi primer amor fue el de una trapecista de circo. Era muy chiquito; en Cochabamba los circos venían para el 6 de agosto, día de Bolivia. Había una equilibrista vestida de rosado; fue mi primer amor.
¿Y el primer beso? A los doce años, quizá. Teníamos juegos maliciosos entre chicos y chicas. El premio era un beso. El primero fue el de Teresita; ¡así nombré a la protagonista de la primera novela!
Abrazó la utopía de joven. ¿Cuándo se rompió la utopía? Cuando los países que vivieron la utopía nos demostraron que ésta provocaba peores injusticias que las injusticias que nosotros queríamos corregir con las mediocres democracias.
Esta realidad no está para echar cohetes. Esta realidad democrática no sólo no es el paraíso sino que puede llegar a ser el infierno. Hay corrupción, falta de transparencia, de vitalidad de las democracias, y eso lleva a los jóvenes a volcarse en la indiferencia y el desprecio por lo social y lo político; me parece muy grave. Es una realidad de nuestro tiempo.
¿Qué le sorprende de lo que habla con los chicos? El enorme desprecio por la política y el compromiso; piensan que es una pérdida de tiempo, que todos los políticos son corruptos. Esa actitud cínica a la que llegan tan pronto es peligrosa para el futuro de la democracia, de la libertad, de todo lo que nos ha sacado de la barbarie.
¿Los convence de lo contrario? Es difícil hacerlo si lo que les ofreces es vivir en sociedades donde no hay trabajo sino para minorías. La gran revolución tecnológica transforma el mundo y hace desaparecer cada vez más oportunidades de trabajo.
¿Qué no entiende de lo que oye? Hay un engolosinamiento con la tecnología como panacea para resolverlo todo. Una utopía peligrosa: amenaza la más grande conquista de la humanidad, la libertad. Es la pesadilla orwelliana hecha realidad.
Dijo que imaginaba la vejez junto a un gran danés, frente al mar. ¿Lo ve lejos? ¡Ja ja ja! Mi sueño es poder seguir leyendo y escribiendo hasta el final. Si es así será una muerte feliz.
Un padre casi de su edad le deja el sitio a alguien que puede ser su hijo, Vargas Llosa. ¿Qué porvenir le augura al nuevo Rey? Creo que es un joven muy bien preparado para enfrentar un porvenir enormemente incierto y difícil. Creo que es un joven muy bien preparado para enfrentar un porvenir enormemente incierto y difícil.

(Mario Vargas Llosa entrevistado por Juan Cruz)