"Cada vez, diga-se, pensamos em menos espaços. Os espaços de
pensamento estão a desaparecer . No teatro diz-se (já ouvimos muitas vezes): o
teatro não é para pensar. No cinema diz-se: o cinema não é para pensar. Na arte
diz-se: a arte não é para pensar. Na literatura diz-se: A literatura não é para
pensar. Nos jornais: os jornais não são para pensar e etc., e etc. A
questão que fica é : então, onde é que se pensa ? No quarto sozinhos ? Fechados
na casa de banho ?
Num submarino ?
Pensar tornou-se quase sinónimo de incomodar os outros. Como se pensar
fosse uma falta de educação. Pensar à frente dos outros, que indiscrição, que
falta de pudor! Pensar começa a ser uma actividade que se tolera apenas quando
um homem está só e a muitos metros abaixo do solo. Pensar, sim, mas no
subterrâneo. Certamente chegará o momento em que levarão as pessoas que pensam
para uma mina a muitos metros abaixo do solo e depois dirão: pensem aí à
vontade.
Acredito que com o tempo poderá surgir uma espécie de aldeia de
pensadores debaixo do chão.Uma comunidade paralela à nossa, que não chegará a
ver a luz do sol - e que ali continuará, nas profundezas, a pensar; a pensar
muito. Uma comunidade de pensadores-mineiros. Ou melhor, uma comunidade de
pensadores transformados, à força, em mineiros. Descubram metal valioso, sim,
mas lá em baixo. Uma cidade abaixo do nível do chão.
Ou então, enviar quem pensa para o mar. Eis outra hipótese. Como se os
pensadores fossem pescadores que não querem peixes, pescadores do nada. Não
querem apanhar nenhum animal, nenhum objecto, nada - só querem apanhar ideias,
que desperdício! Eis, então uma segunda comunidade possível. Os homens que
pensam são expulsos para o mar; para o alto mar!
Eis uma situação ficcional. Um navio gigante cheios de homens que
pensam; os melhores pensadores de todas as cidades ali estão, embarcado; vivos,
sim, e fortes, sim, mas longe da terra e dos sítios onde tudo se decide, longe
de qualquer movimento político, longe do parlamento. Os pensadores estão apenas
a par dos movimentos do mar; porém os homens que ficam em solo firme, os que
expulsaram esse barco do pensamento como se fosse um navio de detritos, de
restos - navio lançado ao mar para aí ficar para sempre - os que ficaram em
solo firme suspiram de alívio. E se esse navio se aproximar da costa será
bombardeado. Eis o barco dos pensadores, o barco dos homens que incomodam o
discurso que se faz em terra firme.
E eis, então, que são criadas duas cidades para pensadores : uma cidade
abaixo da terra e outra acima do mar, literalmente - uma cidade móvel, um
barco.
Em terra firme, na cidade que não treme, eis quem fica: Aquele humano
que não é mal educado; aquele que
só pensa depois dos outros, nunca antes. Como se pensar fosse semelhante
a deixar passar senhoras de idade à frente nas portas.
- Primeiro pense o senhor.
- Não, por favor, primeiro pense o senhor. E assim ficam minutos, horas,
dias, bem educados a insistirem para que o outro pense primeiro. E como são
muitíssimos bem educados ninguém se atreve a dar o primeiro passo e por isso
alí ficam, assim, de frente uns para os outros, com rosto de peixe e pensamento
nenhum; em terra firme, mas tonta."
Gonçalo M.
Tavares
Crónica
publicada na Revista Visão de 22 de Agosto de 2013